Guilda: como montar um corpo híbrido?


hoje é o último dia para ver GUILDA, não perca! foto: joão meirelles

Por Jorge Alencar*

Não seria capaz de apontar uma outra investigação cênica soteropolitana que emparelhasse tão bem duas nuanças - outrora rivais - do termo montar como em Guilda, texto de Bertho Filho, encenado por Marcelo Sousa Brito. O espetáculo faz parte do projeto O que cabe nesse palco do Teatro Vila Velha que incentiva a emergência de novos talentos ao oferecer infra-estrutura e apoio técnico para a montagem de obras inéditas. E bota inédita nisso.

Não cairia na armadilha de misturar noções como originalidade e pós-modernidade a travestismo e moda. Até porque alguns dos grandes fetiches e triunfos desses esquemas são justamente a citação e a apropriação de elementos "alheios". O que tem um enorme valor de ineditismo, além, é claro, das criativas soluções cênicas do espetáculo de Marcelo, é a sua realização propriamente dita. Aí voltamos à questão inicial. Montar Guilda contempla tanto o seu sentido mais "tradicional", de traduzir um texto dramático em encenação, como aquele que evoca as performances de travestismo quando, por exemplo, uma drag queen "se monta" para entrar em cena.

Guilda é a peça de formatura de Marcelo em direção teatral pela Escola de Teatro da UFBA. Mesmo com seu pioneirismo no ensino das artes cênicas em nível acadêmico, a Escola tem promovido ao longo desses anos resultados cênicos de conclusão de curso de naturezas bem diferentes da do feito artístico de Marcelo. Esse ponto sublinha, desde já, a relevância tanto da abertura da Escola para novas discussões, como, sobretudo, da realização de um projeto como Guilda que engrossa, positivamente, o caldo de uma possível crise de identidade cultural.

O texto de Bertho traz cinco personagens preocupadas em vencer um concurso de beleza. O ?problema? da encenação ultrapassa essa disputa quando atualiza a noção de personagem ao propor a elaboração de um corpo híbrido. Esse hibridismo está tanto na construção de gênero (masculino/feminino), como na fronteira entre intérprete e personagem. Quando falo corpo, quero afirmar um sentido largo do termo que incrementa aquela clássica idéia de personagem psicologizado. Além do comportamento e das ações realizadas por cada personagem na cena, tudo é corpo em Guilda: as músicas, os figurinos (criados por Silverino Oju, que levam uma certa decadência para a alta-costura, construídos com gaze e ataduras), a passarela, o público, os sapatos feitos sob medida pelo aclamado designer Fernando Pires. Tudo isso é efetivamente incorporado, realizando um incrível embodiment. Os sapatos de Fernando Pires são mesmo corpo, não sendo apenas um adorno chique em camada superficial.

O talentoso elenco formado por Leonardo Luz, Luiz Santana, Olga Lamas, Vanessa Mello, Xanda Fontes e pelo próprio Marcelo, passa da beleza à decadência em segundos. No papel de público, a gente tanto deseja quanto rejeita aquelas figuras em tempo real. Isso contribui de maneira definitiva na elaboração desse corpo híbrido com identidade esquizofrênica.

Guilda, ao contrário do que olhos preguiçosos podem capturar, não se resume aos deliciosos números musicais de dublagem com seu poder de fogo de entretenimento instantâneo, mas se apresenta como um sistema de organização complexa que já vinha sendo delineado mais explicitamente na montagem anterior de Marcelo: Luz, adaptado de Lux in Tenebris de Bertold Brecht. Nessa última peça, a cena já abria mão de uma assepsia estetizada, apresentando marcações intencionalmente imprecisas vividas por seres marginalizados - prostitutas, homossexuais, miseráveis moribundos - que xingavam nas ruas de um Pelourinho hiper-realista.

Essa poética de ambigüidades e polissemias que se estabelece nas porosidades das fronteiras ideologias e estéticas, no "entre", se aproxima em muitos aspectos do que venho chamando de "corpo borrado" na pesquisa que desenvolvo junto ao também híbrido grupo Dimenti há quase nove anos.

Marcelo Sousa Brito é um artista que veio do interior, trabalha sem patrocínio, se arrisca em trabalhos colocados à margem das grandes produções... Contextualizar esse autor nos ajuda a acessar sua obra e entender de vez que teoria e prática não são coisas apartadas - sobretudo em âmbito acadêmico - e a enxergar a importância do surgimento desse jovem encenador e de Guilda como um acontecimento de relevância igualmente estética e política.

* Jorrge Alenca é comunicólogo, diretor e coreógrafo do grupo Dimenti. Atualmente desenvolve sua pesquisa no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA (PPGAC).

Bibliografia

BUTLER, Judith. "Critically Queer" in Bodies that matter: On the discursive limits of the "sex". New York & London, 1993.

HALL, Stuart. "Identidade cultural na Pós-modernidade" .Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

PASSOS, Fernando. "Corpos em Trânsito X Tráfico de Danças: Coreografando nas Fronteiras". In Revista da Fundarte. Fundação Municipal das Artes de Montenegro, 2001.

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