FRAGMENTOS DE POESIA URBANA, INSÓLITA E MODERNA
Ulisses e Cristina Castro (DANÇANDO!) juntos no Vila
texto: Marcelo Benigno / fotos: Juliana Protásio

A Cia Viladança reestreou o espetáculo José ULISSES da Silva na sexta-feira, dia 12 de agosto de 2005, no Teatro Vila Velha, em Salvador.

A reestréia tinha um gostinho a mais, pois a coreógrafa e coordenadora do grupo, Cristina Castro, estaria em cena dançando com a sua companhia, após um tempo só coreografando seus espetáculos. Não é preciso falar da força e beleza de Cristina em cena, que já esbanjava talento desde os tempos do Balé do TCA, do qual foi bailarina.

De lá para cá, os caminhos mudaram e já fazem sete anos de muitas conquistas, trabalho e contribuição da CiaViladança para a dança contemporânea na Bahia.

ULISSES, se me permitem a intimidade, estreou no dia 12 de julho de 2002, no teatro Vila Velha, e se resume, ainda hoje, em muito mais que insólito, num conjunto harmonioso de aspectos positivos que compõem toda esta montagem.

Cristina consegue como coreógrafa, e agora como intérprete (criador X criatura), causar aquela sensação de bem estar na platéia. Muitos, como eu, ao sair do teatro, ficam inspirados e começam logo a reacreditar na vida, na poesia e em valores e sentimentos tão antigos e esquecidos por nós, sufocados pela massificação na nossa selva ou arena reais.

Em cena está toda a companhia, com a formação atual, com exceção do estreante João Rafael e da bailarina Maitê Soares, que já foi do Viladança e retorna para dançar ULISSES. O espetáculo impressiona pela pesquisa de movimento e dramaturgia, que aliada a várias seqüências viscerais de movimentos rápidos, sugere uma luta coreografada, estressante e repetitiva, reflexo dos nossos dias modernos, com suas relações rápidas e descartáveis construídas pela globalização da nossa sobrevivência, do abraço sem ternura ao consumismo exagerado, do mau humor constante e mordaz ao cotidiano mecânico e frio, do sexo rápido e decorado às lutas nossas de cada dia, que nos leva a labirintos, espirais confusos, estradas erradas, pausas fugidias de consciência... ou a andar em círculos em busca de soluções e saídas desse ciclo vicioso que renova, ou não, diariamente.

Castro coloca em cena personagens que refletem o (in)consciente coletivo e suas relações de poder nos lembram Foucault, com figuras e personagens símbolos das nossas ideologias como o executivo capitalista que tudo quer, interpretado por Jairson Bispo, em excelente forma; o operário destemido, porém acuado de Rafael Neto; o andarilho urbano interpretado pelo ator-dançarino Danillo Brachi ganha uma construção contundente e divertida, ao vigor e impetuosidade de Sérgio Diaz e Bárbara Barbará, que diga-se de passagem, ela está com visual e cabelos arrojados, dignos de sua personagem. A doçura de Leandro Oliveira brinca com a força de Janahina Santos e Maitê Soares, que somadas a maturidade de Cristina, completam o ciclo de sentimentos aflorados em várias relações sugeridas e/ou desenvolvidas na trama apresentada.

Este trabalho é feito para bailarinos intérpretes, pois a maturidade cênica vem não só da perfeita execução dos movimentos, mas do clima vivido por cada história das personagens-pessoas-arquétipos que os bailarinos interpretam e dançam ou vice-e-versa, em cada seqüência.

Outro detalhe interessante é uso do vídeo em cena, que é preciso e necessário, sem as afetações daqueles espetáculos que só utilizam este recurso "para encher lingüiça" ou para adquirem conceito de pós-modernos e tecnológicos. Em alguns momentos ele chega a representar, para os mais intelectualizados, um alter-ego da coreógrafa que nos guia por esta história com seus pingos de poesia urbana. Será isso possível, no meio de tanta correria cotidiana?!



A luz, concebida por Fábio Espírito Santo, dá várias nuances de interpretação, principalmente quando o público não é mais platéia e sim palco. Pequenos focos são acesos em pontos estratégicos da platéia trazendo para dentro da cena, aos olhos e condução das personagens, as personas reais, que os assistem.Talvez esse seja um dos momentos mais reflexivos do espetáculo quando a coreógrafa "brechtianamente" em silêncio, pergunta para o público:

"E você, como se vê diante desse nosso mundo? Já se achou? Ou se perdeu?"

Isso ela já sugere, com os espelhos estrategicamente focalizando o público, numas das cenas iniciais, quando os dançarinos estão se vestindo. Somos o reflexo daquilo que queremos ser ou daquilo que os outros querem? Filosofia moderna!

Sem mencionar a trilha sonora composta para o espetáculo com a direção de Jarbas Bittencourt (a menina dos olhos musicais e teatrais de Salvador) e Kico Póvoas. Esta trilha inclusive, está reunida em um cd a venda no próprio teatro.
Que ficha técnica, hein!!

Cristina Castro volta com todo gás e é novo e bonito vê-la em cena!

Ela está mais acostumada a se mostrar por detrás das suas obras ou aulas, como a seqüência que fez para a audição do Ateliê de Coreógrafos Brasileiros deste ano, ainda nesta semana, tirando aplausos calorosos e suspiros de todos os presentes, ilustres e anônimos, com mais um de seus fragmentos de sonhos e devaneios, emergidos de uma artista intrigante e de grande sensibilidade, que a torna, junto com seu guerreiro grupo, num dos grandes nomes atuais da dança no cenário nacional.

Que sua fábula moderna continue contagiando a todos, guiando-nos por este labirinto real onde a arte certamente é uma saída. As outras poderão estar em vários lugares, talvez bem mais perto do que se imagina, como diz a voz masculina em off, bem distante, já perto do fim do espetáculo:


"A resposta, cara, tá com você, dentro de você!"

Não foram exatamente estas as palavras, mas que a mensagem eu ?captei?, isso pode ter certeza que sim!

Merda para todos! Uma ótima Temporada!!


Marcelo Benigno não é crítico de dança e nem especialista da área, mas é público, e como tal sente, ri, se emociona e se inspira, construindo um diálogo possível e sincero entre a obra de arte e o expectador.

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