Resenha “Do outro Lado do Mar” - A rocha do outro lado do mar


texto João Victor Guimarães*
foto Diney Araújo

A peça “Do Outro Lado do Mar” é um texto de Jorgelina Cerritos escrita em outra Salvador, a El, que foi doado por Márcio Meirelles a Edu Coutinho junto a algumas, várias, outras, desconhecidas pelo próprio doador. Edu, por sua vez, ao encontrar o texto da Jorgelina na nossa Salvador, informou ao Meirelles que era a peça da sua escolha e convidou Andréa Elia que no coro da atuação ecoa muito bem a lição do seu regente: “se explicarmos muito, o mistério se perde”. E o mar acolhe bem a escuridão. Já os bons músicos e as boas músicas dizem que as canções são segredos que adentram uma forma, garrafas, lançadas sem saber de si nem seu porquê, no mar. Quiçá seja o caso da peça aqui em questão.

 “Do Outro Lado do Mar” é lida e feita com base naquilo que ela tem de mais nítido: “nome, sobrenome, endereço”. São esses alguns dos pilares do consumo e, portanto, da sociedade. Se assistida apenas como uma crítica a isso, assim a peça se resume bem. Também faz uso de ferramentas comuns às produções cinematográficas. A peça se beneficia, por exemplo, da regra de ouro “chegar tarde, sair cedo”, aplicando o mistério necessário, impondo à plateia a nebulosa que evolui para se tornar cada vez mais nítida sem perder, ou quase, os espaços para o deleite na introspecção. O texto consegue acolher todas as pessoas e pode sim ser lido através dessa nitidez, assim estaremos a salvo do naufrágio. Mas prefiro não. 

De nome aerado, marítimo, azul como a brisa que roça e canta com as palmeiras, Dorotea resiste ao mergulho no mar. Ela vive na beira, bate seu ponto e lança seu olhar condenatório, talvez invejoso, sobre tudo que não cabe aos meros mortais pressionados pela higiene do nome, o fantasma do Serasa e os gritos das obrigações práticas. Essa rocha da praticidade se encontra com o cavaleiro do mar e então temos uma chance de pensar na vida com a sua ousadia, “abismos, torrentes, desertos". Cada palavra dita sábia e calmamente pelo Pescador do Mar (como ele se denomina), ecoa o mistério e seu desalinho que cerze as vidas libertas endereçadas no azul absoluto. Vidas com desejos nítidos como os nossos não têm coragem de ser. Vidas cujas palavras ecoam nas nossas bocas mesmo quando estamos em silêncio. 

O mar produz um redemoinho enquanto batalha com um rochedo e lança acordes perfeitos, gritos infinitos de alegria e alguma dor. Algo ali nos toca enquanto assistimos àquela congruência. No que e de que aquilo resultará? A fortuna corajosa que se destina a devorar a própria natureza seria capaz de engolir o mundo, por piedade. Mas o rochedo ao seu lado permaneceria intacto. Essa é uma imagem que se repete no palco do Vila Velha. 

Após perdermos mais de seiscentas mil vidas, “Do Outro Lado do Mar” pode sim ser assistida como um grito elegante e ruidoso. Seu instrumento tocado ao vivo indaga: insignificante é o que? O mar, mais ou menos simbólico, é a vida que assistimos soberana com suas reviravoltas a chocarem-se com o amontoado de ofícios práticos, concretos. Talvez essa garrafa nos ensine, não a lançarmos-nos ao mar incontrolável e incerto da vida. Mas a traçar um caminho secreto e esguio para o/a abraçar. 

*João Victor Guimarães é assistente de roteiro, roteirista, estudante das artes e se dedica especialmente à crítica e ao estudo de cinema

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