Crítica Largo - 9ª edição da Revista Barril

Crítica escrita por Igor de Albuquerque
Edição 09/2016 - Novembro | Revista Barril - Revista de Crítica das Artes Cênicas


 15 de novembro, dia da proclamação desta república cansada. O Teatro Vila Velha estava apinhado de gente. Na sala principal, Jessé Souza, Maria Rita Kehl e Marcelo Freixo discutiam os “caminhos e descaminhos da democracia no Brasil”; no Cabaré dos novos (café-teatro do Vila onde funciona uma sala de espetáculos), um telão projetava os três intelectuais; no Passeio Público muita gente perambulava depois de não ter conseguido entrar para ver os palestrantes.

16 de novembro não é uma efeméride para nós – vá lá: a Wikipedia registra o Dia Nacional de Atenção à dislexia por uma lei de 2015. Teatro Vila Velha deserto. Nada na sala principal, mas no Cabaré começaria Largo – remontagem. Até o começo da apresentação eu e mais quatro pessoas nos juntaríamos aos cinco artistas que performariam naquela noite.

Os artistas começam pelo movimento. Vão mudando cadeiras de lugar, arrumando cabos e luzes, posicionando caixas de som dentro do círculo que inicialmente o público forma. Quem toca os primeiros ritmos são os ventiladores. João Meirelles testa efeitos em ruídos microfônicos diante de uma caixa, Lia Cunha anda de um lado para o outro ajustando luzes e câmera, Uru Pereira começa a arrumar pedais e caixas em outro lugar, Pedro Filho pega objetos em cima do palco e ativa um programa no PC. Há ainda a participação de Leo França, que, apesar de não estar fisicamente no lugar, participa mandando áudios via Whatsapp com sugestões de melodias e células rítmicas. No cenário há um elemento importante para a orquestração processual da performance: um setlist adesivado no chão, objeto plano à vista de todos, feito com letras divertidamente desenhadas em amarelo.

Agora Uru está na frente de um pedal EHX Pitchfork ligado a um microfone que transforma sua voz em sibilos de R2D2 e urros de monstros assustadores. Pedro Filho desembainha uma guitarra flying V e arma seu set de pedais no chão enquanto João Meirelles arma acordes no piano do cabaré. Da flying V, Pedro monta seu solo cheio de distorções imerso na névoa da improvisação. A todo tempo a configuração do cenário é transformada, as cadeiras desenham formas diferentes, as caixas de som estão em outros pontos, os objetos acima do palco se espalham. É um moto-descontínuo que absorve e repele por muitas vias e sensações. Há muita coisa em jogo. Pensemos, só por um momento, geometricamente. Largo é uma ação que acontece nas diagonais que cruzam os espaços das diversas linguagens artísticas para alcançar os lados dos sentidos.

O fagotista está montando seu instrumento. Nos próximos minutos veremos Uru pintar sua tela. Os efeitos são engenhosamente aplicados às escalas coloridas para cima e para baixo; regiões muito agudas e muito graves são atravessadas graças ao pedal. Agora os espectadores são guiados para bem perto do solista que chega ao limite de desmontar progressivamente o instrumento aproveitando, assim, todas as sonoridades possíveis. No fim, resta apenas o sopro passando pela palheta. Os artistas começam a guardar as muitas cadeiras vazias e logo todos os que estão presentes ajudam na tarefa que em outro momento poderia ser monótona e tediosa, mas não ali. Ali se sente o raro-efeito do ar que se respira após uma aventura.

Voltando ao início: a diferença entre os dias 15 e 16 de novembro. Não é o objetivo discutir estratégias de divulgação, muito menos o sucesso e o fracasso de um evento, ou de um encontro. Mas, os contrastes friccionados entre cheio/vazio abrem caminhos valiosos para a abstração. Ver um mesmo espaço ocupado de maneira tão diferente no intervalo de um dia para o outro sublinha limites: política aqui, performance ali. Há interesse quando o assunto é política, quanto à performance e à música, tem-se dois ou três gatos pingados a fim viver a experiência. Como se não tivesse muito de performance na fala sensualmente materializada na voz do intelectual, como se não fosse política a ação de um grupo que revira nossos ouvidos habituados a processar no automático a música mais quadrada que nos rodeia. Considerar a dimensão dos interesses sugere movimentos mais arrojados ao redor dos limites. Às vezes só é preciso querer para se saltar uma cerca. Mas também dá pra passar por baixo. Ou pelo meio dos arames.
 

 

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