UNIVERSIDADE LIVRE DE TEATRO VILA VELHA - Fábula do nosso tempo - Por: Carolina Lyra


Foto: Benedito Cirilo

Texto escrito a partir do espetáculo “Espelho para cegos” montagem da Companhia Teatro dos Novos e encenação de Márcio Meirelles.

FÁBULA DO NOSSO TEMPO

Li em algum lugar que “Teatro Decomposto ou o Homem-lixo: monólogos...” podia ser considerado como uma fábula de nosso tempo. Imediatamente me veio imagem de estar com a minha sobrinha, lendo pra ela ao invés das fábulas de Esopo, as fábulas de Visniec. Como seria isso? “Clarinha, era uma vez uma moça que estava passando e uma velha jogou o lixo nos pés dela, ela achou a que a tal velha tinha enlouquecido, mas todo mundo começou a jogar lixo nela, até o dia que ela percebeu que era a mulher-lixo”. Que horror. Não quero contar isso pra minha sobrinha. Vamos fazer outra tentativa. “Clarinha, era uma vez um homem, que desenhou um círculo onde ele podia entrar e ficar muuuito confortável, lá dentro ninguém podia tocá-lo, incomodá-lo, etc etc”... Mas lá pelas tantas a própria Clarinha ia perceber que ele virou prisioneiro da própria solidão e que ficar dentro do círculo talvez não fosse uma ideia tão boa assim. Isso seria horrível também.
Aliás, quando eu falasse que iria ler pra ela umas fábulas do Visniec, a própria Clarinha, daria uma rápida pausa nos youtubers que ela assiste pra dar um google nesse nome. Descobria rapidamente que Matei Visniec nasceu em 1956, na Romênia, que hoje mora na França e que escreve em francês, que ele é considerado pelos críticos como o novo Ionesco (whatever it means, isso não valeria uma nova conferida na wikipedia), que suas peças foram  traduzidas para o português e ele virou o “xodó do teatro brasileiro”. Nessa altura do campeonato, Clarinha ia estar achando que a tia dela é meio doida e se perguntaria o que é que a Romênia tem a ver a com o Brasil, como quem se pergunta o que é o amor tem a ver com gratidão. (Sim, nessa idade da fábula, espero que eu já tenha mostrado algumas músicas pra ela, e que Tom Zé ainda esteja vivo e peralta pra gente curtir um show juntas!)
Clarinha não deveria estar tão interessada assim, e não viu que o Visniec nasceu numa cidadezinha romena chamada Radaiuti, com apenas vinte mil habitantes e com uma estrada de ferro que a corta de uma ponta à outra. Não viu que eu poderia contar a história da mulher lixo, ou do homem do círculo, ou da mulher perseguida por um cavalo, ou de um operador de máquinas que recolhem cadáveres, ou dos lavadores de cérebros.
E se a Clarinha me perguntasse se eu gostei? E do que eu mais gostei? Eu ia ter que contar a verdade pra ela. Dizer que fui no teatro e que enquanto eu ouvia as fábulas eu ficava pensando “como é que o cara sai de uma cidade pequeninha na Romênia e vem me atravessar aqui, tantos anos e léguas depois?” Lógico que ela ia querer saber mais sobre isso. Será que eu poderia dizer pra ela a mesma coisa que eu diria pra gente adulta?
Logo no comecinho da peça um homem é devorado por um cãozinho de várias bocas. Enquanto eu imaginava o sujeito em carne viva, me veio uma frase... se é para a alegria de todos e delírio geral dos deleuzetes, digo à todos que “o mais profundo é pele”. Não fui eu que disse isso. Foi o Deleuze. Ou melhor, foi o Paul Valéry. Quer dizer. Foi o Nietszche lá atrás. Foi, na verdade, assim, um foi retuitando o outro e essa mensagem na garrafa chegou até 2018.
Eu sou tão louca quanto a “louca tímida” e as suas borboletas carnívoras, lindas e coloridas. Eu sou tão louca quanto a “louca febril” e seus caracóis pestilentos e a nostalgia das borboletas por elas serem limpinhas. Eu sou tão louca quanto a “louca lúcida”, seu monstro-chuva e o lamento pelo silêncio do caracóis pestilentos. Eu também vivo correndo e não consigo parar como o corredor da cidade. O mais incrível é ver que não se trata de um “eu”, se trata de um “nós”.
Eu poderia desdenhar, Clarinha, rir de teatro político. Teatro político pra quê? Pra quem? Não me interessa se for uma arte feita só pra quem leu Visniec e Ionesco e Beckett, ou sei lá mais quem. Mas nesse dia, eu levei sua tia Bia ao teatro comigo pra ver a encenação dessas fábulas que estou lendo pra você. Sim, tia Bia. Tinha um tempo que a tia Bia não ia ao teatro. Eu fiz essa mesma pergunta que você me fez pra ela!
Sabe o que me encantou, Clarinha? Foi como essas fábulas reverberaram nela! Sabe qual a parte que ela mais gostou? A mulher-lixo! Ficamos pensando juntas em voz alta, Clá-clá. O que são bolinhas de papel, chicletes mastigados e cacos de vidro? Quantas e quantas vezes servimos de receptáculo para o lixo alheio? Sem reagir? Por que não reagimos se sabemos que aquilo está errado? Por que nós trancamos na nossa individualidade? Por que queremos consertar aquilo já morreu? Por que não insistimos na fuga? Por que cedemos ao cavalo que nos persegue?
Olha Dona Clara, agora já está muito tarde e já está na hora de dormir! Depois a gente lê mais juntas. Ah, quer dizer que você gostou das fábulas do Visniec? Se tem mais? Não sei Clarinha, vou ter que procurar. Moral da história? Como assim, Clarinha? Ah, tá. Toda fábula tem que ter uma moral da história, né? Lá vai:


Moral da história: bailemos a valsa visniciana do risco sem medo do perigo.

Carolina Lyra - participante da Universidade Livre de Teatro Vila Velha

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