Hécuba, a cadela



Arearea, Paul Gauguin

Por Lia Nascimento, Teatro dos Novos


Escrito a partir do processo de reposição do espetáculo POR QUE HÉCUBA (teatro dos novos).  

Hoje eu queria ser um cachorro. Às vezes penso nisso quando, seguindo o ritmo frenético da vida, me deparo com a contrastante tranquilidade de um cachorro que dorme à sombra de um carro ou de uma árvore no centro da cidade. Sinto inveja de um cachorro. Sinto inveja pela simples possibilidade de deitar, diminuir minha frequência cardíaca, esquecer as obrigações e cobranças mundanas e respirar numa sombra. Até que meu pensamento se desfaz quando considero a dificuldade que deve ser viver na rua, até mesmo como um cachorro. Chego a considerar as noites chuvosas e a fome, mas a ideia se reconstrói quando constato que o que não falta na rua é lixo e cachorro pra comer o lixo. Viver só pra respirar, pra piscar quando um vento um pouco mais forte passa, extravasar às vezes brigando por comida ou território, não sofrer pelo que passou, não ansiar pelo que está por vir, não chorar por culpa, não sentir preguiça. Não nada. Para não sofrer, para não comer cinzas, para não precisar ver uma nova poça de sangue. Acho que Hécuba é mal agradecida aos deuses. Deuses que humanamente decidem transformá-la em uma cadela. Agradeça, Hécuba. Porque sim. 


POR QUE HÉCUBA 
19 a 29 de julho / 02 a 05 de agosto 
No Teatro Vila Velha

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