É educação ou Exército na rua

Para educador francês, ensino de má qualidade compromete a democracia brasileira
Entrevista publicada no Jornal O Globo
Imagem retirada do site www.ufpa.br

O historiador Jean Hébrard, inspetor-geral do Ministério da Educação da França, afirma que o fato de a escola pública brasileira não ser mais o espaço no qual convivem crianças da classe média e das camadas mais pobres, e de oferecer a estas últimas uma educação de péssima qualidade, está na raiz da violência que sacode as cidades brasileiras de médio e grande porte. Para Hébrard, que participou do ciclo de palestras "Os custos do analfabetismo funcional", organizado pela ONG Leia Brasil, só há dois caminhos, e o país precisa escolher: educação ou tanques nas ruas.

Num português fluente, embora carregado no sotaque, o francês - que já fez diversos trabalhos no Brasil, como a elaboração dos parâmetros curriculares brasileiros - afirma que, se morasse aqui, lutaria para convencer a classe média a voltar para a escola pública e exigir que o governo dê educação de qualidade a toda a população. Sem isso, diz, a democracia brasileira está em risco.

O senhor diz que a escola pública no Brasil foi desenhada para a classe média, que hoje em dia está na escola particular, e que esse modelo, portanto, não serve à educação das camadas mais pobres.

JEAN HÉBRARD: Foi um erro dos anos 50 repartir o mundo entre duas escolas, a particular e a pública. Porque o que faz a democracia num país é a possibilidade de todas as crianças estarem aprendendo na mesma escola. O lugar onde se partilha uma cultura comum é absolutamente essencial numa democracia. A separação das crianças em dois mundos que não se encontram vai acabar num desastre. Temos um desafio semelhante nos Estados Unidos e na Europa: como promover uma educação que seja social, numa democracia moderna? É a única maneira de partilhar as representações da cultura. A coisa mais importante é dar à população pobre a melhor cultura possível, e não uma cultura desvalorizada. Não se pode deixar a classe média confiscar a cultura somente para ela. Senão vamos para um mundo em que cada um estará fechado em seu condomínio, com cerca elétrica.

Isso é muito agudo no Brasil.

HÉBRARD: Sim, porque o Brasil é um país em desenvolvimento rápido, e, nos países que estão crescendo rapidamente, há grandes diferenças econômicas e sociais entre a parte da população que aproveita o desenvolvimento e a que fica fora dele.

O senhor avalia que essa situação se reflete na segurança pública?

HÉBRARD: Certamente. A violência nasce dessa falta de convivência. É preciso abrir um espaço novo para a confrontação social. E o único momento em que se pode fazer isso é a infância. O que de melhor uma família pode fazer hoje por suas crianças é oferecer a elas a possibilidade de encontrar crianças de outras classes sociais. Que não sejam apenas os filhos da empregada, claro. Senão o mundo fica patriarcal. Nesse sentido, o Brasil de hoje pouco difere daquele do século XIX. A diferença é o nascimento da classe média, o que é muito importante, porque é essa classe que pode fazer a democracia. E ela precisa abrir mão de privilégios. Na França temos o mesmo problema. Temos um mundo partido entre o que chamamos de banlieue, as periferias das cidades, que são culturalmente semelhantes às favelas. Se fala uma outra língua, se fala de uma outra maneira. E os dois mundos estão se matando.

O senhor acredita que seria um movimento a favor da democracia se a classe média voltasse a pôr seus filhos na escola pública e exigisse qualidade?

HÉBRARD: Minha filha se casou com um brasileiro, vive aqui. E vejo que ela está se abrasileirando, porque pôs o filho na escola particular. Eu disse a ela: você foi da escola pública na França a vida toda. Acho, sim, que tem que haver um movimento para a classe média voltar para a escola pública. O que faz diferença é a capacidade de viver junto. É preciso que a escola reaja, seja capaz de fazer uma proposta nova de cultura, que una a sociedade. Eu vejo que o Brasil não gosta de construir sua própria história. Não é o futebol que faz uma nação, é a história. E a história, na escola, foi completamente abandonada. Assim, o orgulho de ser brasileiro não tem sentido. O que é o Brasil? É um país que tem uma história muito interessante, com a colonização, a escravidão, a imigração. Não se pode deixar apenas a TV Globo mostrar uma imagem espetacular dessa história. A novela "Terra Nostra", por exemplo. Um encantamento essa obra, mas somente a escola pode pegar essa saga dos italianos e colocá-la ao lado da história da imigração alemã, dos portugueses, dos escravos. Somente a escola permite a visão crítica daquilo que a TV apresenta. E cada brasileiro, idoso ou novinho, deveria saber de cor as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Porque o que está na obra desse autor genial é o Brasil.

Os gestores de centros culturais, como o CCBB e o Instituto Moreira Salles, queixam-se que, apesar da programação gratuita, as pessoas pobres não freqüentam esses lugares. Elas simplesmente não entram lá.

HÉBRARD: Para entender por que razão, a questão da pré-escola é fundamental. As crianças da classe média não precisam tanto da pré-escola, porque têm tudo em casa, têm acesso a ela. As crianças pobres, que precisam demais porque não têm nada em casa, não. A criança vai para a escola muito tarde no Brasil. E mesmo aos 6 anos, como o governo quer agora, é tarde. A idade para começar na escola é aos 3 anos. Porque a criança precisa de três anos para ser alfabetizada, para dominar a língua e começar a utilizá-la de forma criativa, inteligente. Se a criança pobre vai para a escola com 6 ou 7 anos, e só vai ser alfabetizada - se for - lá pelos 10 anos, ela perde o interesse. Vai preferir ficar na favela trabalhando com drogas para ganhar algum dinheiro. Na Europa, o salário do professor da pré-escola é igual ao do profissional de outros níveis, e ele deve ser valorizado. Por volta dos 3 anos, a criança é flexível, é a idade em que ela pode entrar na cultura. O tempo que a criança fica fora da escola organiza a sua desculturação.

O governo brasileiro anunciou um plano...

HÉBRAD: É preciso sair dessa idéia de que um plano é a solução, um milagre. Um plano é uma maneira de gastar dinheiro, não de fazer uma política educativa que dê resultados. É preciso que toda a nação decida sustentar um processo educativo democrático.

Mas aqui no Brasil há ainda o fato de que o ensino privado tem uma bancada forte e influente no Congresso.

HÉBRAD: Trata-se de uma escolha. O Rio é o lugar onde se dá a experimentação dessa divisão do país. Como acabar com o que acontece hoje, da guerra entre morros até em bairros centrais da cidade? Existem duas possibilidades: a educação ou o Exército. Pode-se decidir que é o Exército que vai acabar com a violência que brota dessa divisão entre quem aproveita e quem não aproveita o desenvolvimento. Faz-se campos, isola-se as pessoas. Ou pode-se optar pela educação, já. É um desafio para um país que será um dos maiores do mundo em duas gerações.

E como começar?

HÉBRARD: O Fundeb (Fundo de Valorização do Ensino Básico) foi um movimento muito interessante. Mas quando se deixa a educação fundamental a cargo do município, aumenta-se a desigualdade, porque os municípios são muito desiguais. Há muitos que são muito pobres, e poucos que são muito ricos. Não é um bom lugar para se organizar a educação fundamental. A educação básica é uma questão federal, é do país. Eu visitei escolas no Pará e no Maranhão, meu Deus, quanta miséria!

Esse descaso do Brasil com a educação afeta a imagem do país no exterior?

HÉBRARD: Eu sempre digo, na Europa, que o Brasil será um dos maiores países do mundo em duas gerações. Mas um país pode ser o maior para o bem ou para o mal. O Brasil precisa escolher se será um bom país. Não é somente a economia que dá papel de líder a uma nação, é também a qualidade, o modelo de sociedade que vai apresentar ao mundo. Vejam o caso dos Estados Unidos. Não é o modelo do Bush que queremos para o mundo. Que tipo de líder intelectual, ideológico, o Brasil quer ser? Tem muita responsabilidade nessa escolha. E tudo começa com a educação. O aluno de hoje será o produtor desse país-líder em 20 anos, 30 anos.

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