Vermelho, laranja, amarelo e cinza





Cena criada por Clara Romariz, durante o Módulo II do Laboratório Escritas da Cena


(Sala de uma casa na Graça, bairro de Salvador. Entardecer. Cinco tapetes chineses estampados, um perto do outro. As cores desses são basicamente azul, lilás e cinza. Velas na mesa de madeira. Falta de luz artificial. A luz do sol surge suavemente da janela vermelha, também de madeira. Marcela, mulher que aparenta ter 25 anos, aparece com uma caneta prendendo o cabelo. Laura, de vestido azul, está com uma xuxa preta no seu cabelo castanho cacheado. Tem 28 anos)

Marcela- Já pensou em como deve ser louco estar num incêndio? 

Laura- Ahn?

Marcela - Todo aquele fogo subindo, tudo ficando vermelho, laranja, amarelo escuro, e depois cinza.

Laura- Quê?

Marcela - E as pessoas correndo desesperadas, procurando o elevador que tá parado, ou sei lá, é... entrando nele e caindo. Aí a mulher que não tá achando o marido desce pela escada e tropeça e aí.

Laura- Você tá assistindo muito filme.

Marcela - Vai, Laura, embarca na história. Pensa comigo, vai. Pensa! E como foi que surgiu o incêndio? Talvez de uma tomada com um carregador velho, daqueles que tão com os fios soltos; ou de uma lata de lixo de um escritor, que parou de escrever no computador porque tinha medo de perder os arquivos.

(Joana aparece na sala com blusa com frases em inglês e calça de pijama, escovando os dentes. Aparenta ser a mais velha. O chão é de madeira velha, sem verniz, talvez por ter passado por muitos sapatos, ou pelo arrastar frenético da estante grande com três livros que a cada mês muda de lugar)

Joana- Tipo aquele filme colcha de retalhos, que a mulher escreve tudo no papel, (cospe a pasta misturada com saliva no copo de requeijão) os papeis voam e ela fica catando no jardim...

Marcela- Com aquele gramado lindo.

Laura- Vocês são é loucas.

(Joana expira com força)

Marcela- Tá. Aí, como o escritor parou de escrever no notebook, ele escreve tudo num caderninho

Joana- De capa vermelha, porque ele é comunista.

Marcela- Pode ser. E o lixo fica cheio de papeis amassados, porque ele arrancou do caderno. 

Joana- Tava em crise. Só saia "moralina"

Laura- Quê?

Marcela- Aí passa um vento forte na janela meio aberta, a vela, tipo aquela que tá alí na mesa, cai no lixo, o papel pega fogo e começa o incêndio.

Joana- E como ele tava dormindo até mais tarde.

Laura- A culpa é sempre do intelectual.

Marcela- Para, Laura, que saco. Você fica só botando defeito.

Laura- Não começa...

Joana- Shhh!

(Passa um vento forte na janela da direita. Laura corre pra fechar. Fica próxima a janela)


Marcela- Ou então a vela cai pro outro lado.

Joana- Porque o vento vem no sentido contrário e é na janela da esquerda que ele sopra.

Marcela- E bate na persiana. E o fogo vai subindo nela.

Joana- Vermelho.

Laura- O que é que é vermelho?

Joana- O fogo.

Laura- Mas fogo não é laranja?

Marcela- Não importa.

Laura- Vocês não sabem fazer os detalhes, aí não tem graça. A história fica péssima, sem sentido, não é verdadeira. Ninguém acredita.

(Entra Maria Clara, garota que aparenta ter menos de 20 anos, de cabelo solto e comprido. Traz uma vela pela metade em cada mão. Durante a cena, na qual não põe a vela em momento nenhum num prato ou em outra superfície, da vela sai cera branca quente e sua mão queima. Ela reage e segue)

Maria Clara- Eu acredito.

Laura- Você não conta.

Maria Clara- Eu não conto?

Joana- Shhh!

Marcela- E aí o fogo se espalha, vai tomando tudo que é de papel ou de pano. Chega na cozinha.

Laura- Como?

Marcela- Chega na cozinha, no gás e BUM, explode tudo. O prédio começa a pegar fogo, mas os bombeiros não chegam

Laura- Você anda vendo filme demais.

Maria Clara- Os bombeiros não chegam porque tão apagando outro incêndio.

Joana- Que é na esquina da rua. Tá há muito mais tempo.

Laura- Não faz nenhum sentido, se é na esquina eles iam. 

(Joana expira alto. A casa vai se escurecendo com a chegada da noite)

Laura (como em delírio)- Olha, tudo começa com um homem, que... não é escritor. Ele é fumante (riso baixo de Marcela) e está tentando há cinco meses parar de fumar, mas não consegue. Seu impulso, sua vontade é mais forte do que ele. Há cinco meses. Ah, ele tem ansiedade crônica. Não, não como você, Maria. O nome dele é Pedro. Pedro fumava sempre na varanda do seu apartamento do segundo andar, porque sua mulher não gostava de fumaça. Ela era super zen, natureza, saudável, macrobiótica. Pedro e sua mulher tinham alguns problemas. Brigavam muito. A relação estava ficando complicada. Não transavam mais, mal conversavam. Ela trabalhava muito, Pedro dizia. Ele era muito, muito teimoso, ela dizia sempre. 

Maria Clara (ri)- Já vi essa história.

Marcela- Proliiixa...

Laura- Ah, assim não dá.

Joana- Vai, Laura, continua, vai.

Laura (Suspira. Frenética)- Se separaram. Pedro acendeu um cigarro. Pegou no sono. A casa começou a pegar fogo. Por causa do tapete, igual ao que Marcela trouxe da China. O tapete espalhou as chamas, que se alastraram pela persiana. Fogo! Gritavam as mulheres do terceiro e do primeiro andar, desesperadas, frenéticas, hipocondríacas. Que sempre achavam que ia acontecer um desastre naquele prédio de velho. Os velhos não acreditaram nas hipocondríacas. Até que o fogo começou a tomar tudo. Pedro acordou, não sei se pela fumaça, pelo acaso, por instinto, ou pelo fim do efeito do remédio, cuja receita ganhou de um amigo geriatra. Acho que por instinto.


(Vento forte na janela a esquerda. Clarão)

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