Par, ti, tu, ra, lê pêti, pêti pô lá, nescafé com chocolá



Foto: Liesbeth Bernaerts

Sobre o espetáculo Partituur, de Ivana Müller (Festival Viva Dança 2018)
Texto produzido durante o Laboratório Escritas da Cena, realizado pela Vila Barril.

Por Ana Carolina Oliveira   

UM. Existem certas apresentações artísticas que desafiam o nosso modo costumeiro de entrar em contato com a obra. Esses acontecimentos convocam para além de uma observação passiva e invertem a postura habitual do mero espectador, para implicar o público na própria vicissitude daquela experiência. São espaços nos quais geralmente não há cadeiras; a circulação é livre e o público se apropria do local como bem quiser. E por isso há sempre um estranhamento pairando. Frente a essas obras sempre penso se devo mesmo fazer algum tipo de interação ou me resignar e deixar ser levada pela corrente. Mas a questão central é que, nessas situações, somos compelidos a nos desacostumar. São propostas cênicas que nos desensinam a ver os espetáculos como geralmente vemos: distantes e apoltronados. Esse é o jogo de Partituur. Melhor dizendo: Partituur é um jogo. E a primeira jogada é desaprender a ver um espetáculo de dança.

DOIS. Uma vez perguntei para uma criança porque ela estava cheia de prendedores de roupa pregados no cabelo. Ela olhou para mim com impaciência e não disse nada. Fui logo tirando uma presilha da bolsa, e o gesto só a deixou ainda mais irritada. No auge do seu aborrecimento com aquela situação, ela olhou para mim explicando o óbvio: “Não preciso disso, eu estou fantasiada de roupa secando no varal”. As crianças têm disso. Elas estão a toda hora nos ensinado a entender o mundo por outras lógicas. São peritas em transformar as coisas com o olhar, esse olhar imprevisto, que ainda não foi cooptado pelos vícios utilitaristas do universo adulto. Diante de uma caixa de sapato, por exemplo, a criança se pergunta quantas existências aquele objeto pode conter. Uma caixa de sapatos pode ser uma cama, uma casa, um foguete, uma máquina ou qualquer coisa que ela quiser que seja. 

TRÊS. Enxergar uma partitura num conjunto de indivíduos se movimentando aleatoriamente num espaço, escutando sons que só eles sabem quais são, é desacostumar o olhar e exercer essa lógica infantil. Assim é Partituur, um espetáculo de dança voltado para as crianças. A dança é feita para elas e por elas, pois essa partitura só pode acontecer numa vibração pueril, que se dá a liberdade de fluir por aí sem medo do ridículo. Antes de entrar no local onde a dança acontece, nos é informado que ali não existem espectadores. Todos participam. Se você não tá afim de dançar, não entre. Aí fica logo patente o constrangimento do adulto. Trocávamos olhares receosos e risinhos sem graça, enquanto as crianças já estavam implicadas no jogo. O espetáculo acontece em um grande salão com linhas coloridas desenhadas no chão e caixas de papelão espalhadas pelo espaço. Antes de entrar todos recebem um fone de ouvido e um crachá com um nome que será seu avatar no jogo. Do fone saem instruções que podem ser seguidas ou não, e que sempre sugerem movimentos. Pular, correr, caminhar, ir de uma linha a outra, dançar, ser um personagem, ser um país, sair do seu país e ir visitar outros. Assim, minha postura de crítica foi destroçada e eu nem percebi a hora. Quando dei por mim já estava estirada no chão tentando me proteger de um grande terremoto. 

E JÁ! No final das contas a brincadeira suplantou a analise daquele acontecimento. Mas tudo bem, porque eu gosto de ser absorvida pela arte. Uma das grandes capacidades que a arte tem é a de capturar o indivíduo para o universo dela, de maneira que em certo momento o mundo ao redor se desvanece e nada mais existe, só o filme, ou o livro, ou a pintura. Mas até então eu não tinha percebido que a brincadeira também faz isso. E que brincar pode ser uma forma de arte. Ou que a arte é uma forma de brincar. Enfim, exercícios da lógica infantil. A verdade é que sinto falta de acionar esse olhar com mais frequência no meu dia a dia. Talvez se fizesse isso o mundo se transformaria em um lugar menos sisudo, distante e apoltronado.

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