Você sabe o que é Pós-Cinema?

Os cineastas Lula Oliveira e Caio Araujo bateram um papo com a gente sobre a oficina "Cinema e Pós-Cinema – Uma imersão nas práticas audiovisuais" que acontece no Teatro Vila Velha, de 19 de março a 02 de abril.

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Lula Oliveira
Caio Araujo



















O que é pós-cinema?

Caio Araujo- eu vi este termo quando li um livro de Arlindo Machado de 1997 chamado "Pré-cinemas e Pós-cinemas". Pós-cinema seria basicamente, se você pensar numa linha histórica do cinema experimental, formas, desdobramentos de possibilidades de fazer cinema depois que ele se instaurou enquanto linguagem oficial, enquanto "cinemão". Isso dentro da história do cinema experimental, depois das vanguardas soviéticas, das experiências feitas com cinema expandido, que foi um termo inventado por um americano chamado Gene Youngblood e os desdobramentos disso, depois a relação desse cinema com a imagem eletrônica, o nascimento dos VJs, até chegar nas possibilidades do contemporâneo - que são diversas. Tem uma mulher chamada Natália Aly que tentou categorizar a expansão contemporânea do cinema experimental. Ela fala de milhões de termos: pós-cinema, trans-cinema, neuro-cinema, cinema sinestésico, cinema quântico. Enfim, milhões de formas de se produzir. O pós-cinema está nisso, está nestas expansões e possibilidades de se produzir de formas diversas depois que o cinema se instaurou enquanto linguagem dentro de uma perspectiva do cinema experimental.

Como se mostra o pós-cinema nos dias de hoje? Como isso aparece nos filmes?

CA- Você pode pensar como formas de abordagem. Eu fiz um filme agora chamado "Elogio à Utopia”, que foi o filme que ganhou o festival PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA. É um filme que foi feito através de arquivo, eu não usei câmera para fazer. Um arquivo que vem basicamente do youtube e do facebook. Um filme que tem pretensões temáticas complexas, tentando investigar uma retomada de utopia brasileira do século XXI através destas imagens que estão na internet. Mas eu acho que correspondem muito [o pós-cinema hoje] a essas abordagens diversas, não só um filme exibido no cinema, mas também performances artísticas usando o audiovisual, a possibilidade de montagem em tempo real, o live-cinema, a relação do cinema com a instalação. São possibilidades diversas. Existem performances artísticas em que o público através do celular modifica a imagem que está sendo projetada. São abordagens que nem sempre vão pro cinema. São práticas artísticas que tem o cinema como base, mas apontam para lugares diversos

Lula Oliveira- Complementando o que ele disse, o conceito de pós-cinema é uma subversão do que a gente entende como cinema, da forma que o conceito foi construído em sua historia e da maneira em que ele foi produzido. O cinema vem de uma forma de produzir que se inicia na construção de um roteiro a partir de uma ideia. Este roteiro passa por uma pré-produção, depois é filmado, produzido e pós-produzido, ou seja, vai para uma linha de finalização, de montagem, edição e vai para a sala de cinema. Esse é o cinema que tradicionalmente nós conhecemos, interagimos nas salas, nas nossas casas, nas plataformas de vídeo por demanda. É o que a gente entende por cinema. O pós-cinema subverte esta lógica, porque ele não é feito a partir de um processo que estava construído dentro desta dinâmica de produção, apesar de haver antes da sua realização a construção da ideia. Não necessariamente ele vai passar por um roteiro, ou por um momento de produção da forma como o cinema se realiza. E nem na pós-produção porque ele pode estar se confundindo com o processo de exibição em tempo real onde a imagem está sendo captada dentro do espaço ou do universo que se propõe a se registrar. Então eu acho legal a gente buscar essa compreensão do pós-cinema entendendo também o que é o cinema dentro da perspectiva da sua forma de fazer. Porque no final o cinema e o pós-cinema querem a mesma coisa: a interação do público, a fruição da mensagem e da reflexão do que está sendo exibido na tela. O cinema e o pós-cinema, nas duas formas de produzir imagem e fazer com que essa imagem interaja com o seu público, tem a mesma finalidade. É a essência da arte, a interação com seu público.

Como criar um produto, uma nova narrativa a partir de algo que já está pronto? Como vocês fazem isso? 

CA- Isso também não é nada de novo. Tem um crítico e curador francês chamado Nicolas Bourriauld, que tem um livro de 2002 chamado “Pós-produção”. Ele ficou muito conhecido no Brasil primeiro por um livro dos anos 90, chamado “Estética Relacional”. Neste livro de 2002 ele diz que percebeu que há uma tendência no início dos anos 2000 de artistas contemporâneos estarem muito interessados em utilizar coisas que já foram pensadas para fins específicos na cultura e terem essas coisas como matéria prima para a realização de suas obras. Seria uma espécie de artista da pós-produção. Tem um francês chamado Pierre Huyghe. Os filmes que ele fez foi basicamente um trabalho de refilmagem. Um dos filmes dele é uma refilmagem de um filme de Hitchcock e outro é uma refilmagem de um filme de Pasolini. Ele pegou o roteiro de um filme que já tinha sido feito e refilmou no país dele, plano por plano deste filme. Tem uma artista francesa chamada Dominique Gonzalez-Foerster que mora no Rio hoje. Boa parte das obras dela são ampliações de obras que já existem. Ela pega uma escultura que já existe e faz a mesma escultura em tamanho maior, em 2 metros. É uma tendência da arte contemporânea. É como se o artista fosse uma espécie de DJ, ou programador cultural. Pega coisas que estão dadas e refaz. É uma tendência de dialogar com a arte do tempo.

LO-  Vou fazer um recorte em relação ao que pretendemos para a oficina. É justamente isso, se apropriar desse acervo incrível e importante para a história do Vila Velha e do teatro brasileiro e a partir dessas imagens, criar ideia e formatos e filmes que possam dialogar com esse material já existente. O que motivou a realização de todo esse trabalho é poder imergir no arquivo do Vila e criar a partir daí. Nós e os jovens que vão participar dessa oficina não sabemos o que existe. Sabemos que é um acervo rico, histórico, que é memória, mas podem acontecer diversas coisas que nós não dominamos a princípio. Então como se estabelece essa linha tênue entre o desejo e a construção desse desejo para que se tenha de fato um resultado concreto em cima desse processo? É uma imersão que tem haver com o que vamos assistir, com nossa capacidade e potência criativa de transformar isso em uma narrativa, em uma linguagem, em um formato.

Como surgiu a ideia da oficina? 

LO- A oficina nasce de um desejo antigo do Vila de dialogar com o cinema. Nas minhas conversas com Marcio Meirelles ao longo de quase 20 anos isso já foi sinalizado diversas vezes. O Vila passou por várias experiências cinematográficas: o cineclube do Vila, o laboratório audiovisual com produções que já foram realizadas. O Vila é um parceiro do cinema brasileiro e baiano, porque muitas produções dialogaram com o espaço, com a inteligência e com os atores formados por este lugar. Essa história do teatro do Vila não está desassociado do cinema. O que motivou essa oficina foi essa provocação, essa problematização de se ter um acervo dessa magnitude e fazer com que esse acervo dialogue com o público, com a sociedade. Porque você não tem como disponibilizar esse material bruto do acervo nas plataformas digitais, pra que de alguma forma ele tenha diálogo com a televisão, com o youtube. A ideia, o desafio é esse, nos apropriarmos do material bruto e junto com os jovens da oficina criarmos conteúdo a partir desse material.

Vocês pretendem seguir de alguma forma com o resultado da oficina?

LO- Esse parceiro está fazendo a oficina comigo… Na verdade eu é que estou fazendo a oficina com ele, porque eu conheço o Caio da época da faculdade de tecnologia e ciências, eu como professor e ele como meu aluno. Hoje as coisas se inverteram um pouco. Ele se aprofundou na academia, estudou e pesquisou esse universo do cinema, dentro desta linha do pós-cinema. Se especializou, já fez um longa-metragem premiado, é um jovem talentoso com um futuro altamente promissor. E a gente vai construindo em processo, né. Tivemos essa relação da sala de aula, depois trabalhamos (não diretamente juntos), com ele prestando serviço para a produtora da qual eu sou um dos sócios. Temos uma afinidade de irmandade muito grande, apesar de seguirmos caminhos distintos nas nossas vidas. E estamos vivendo essa experiência de parceira, de cineastas que estão se propondo a passar esse conhecimento adiante. Então eu acho que existem perspectivas a partir deste momento com o próprio Vila Velha pra fazer com que essa oficina se transforme em outros projetos, outras experiências envolvendo o laboratório audiovisual do Vila.

CA- Até para a própria formação do publico, depois. A gente quer trazer esse recorte teórico, essa imersão dentro da historia, mostrar conceitos, mas além de tudo, apresentar técnicas e formas de se produzir. Tanto para a montagem não-linear, uma montagem finalizada –aprender a editar, montar um produto audiovisual- quanto essas possibilidades de montagem em tempo real que vão dar essas outras possibilidades de produção. Uma dimensão muito importante nessa oficina é a formação técnica para que as pessoas que participem aprendam a produzir, fazer para que a partir daí possam produzir suas próprias coisas ou continuar dialogando com o Vila. Enfim, expandir da forma que for melhor pra cada um. 

LO- Minha experiência com oficinas em audiovisual me diz que não tem como, ao longo desse processo, pessoas não se destacarem (não no sentido do talento. No sentido do desejo de fazer aquilo que ele veio para aprender a fazer). É normal você, ao estudar, saber o que você não quer fazer. E você só sabe o que você não quer a partir da experiência que você teve diante daquilo. Então essas oficinas também trazem isso para as pessoas que fazem: tanto no sentido de ir adiante, quanto no de não querer fazer aquilo e é bom saber o que não se quer. Os que querem, que veem isso como uma perspectiva de formação, de crescimento, de evolução, saibam que vocês vão ter dessa formação a possibilidade de a partir desse conhecimento seguir adiante com as próprias pernas articulando com outras redes, com outras estruturas e com o próprio Vila. Com um conhecimento que facilitará o empreendedorismo diante de ideia s que venham surgir a partir do fim deste curso. Porque a ferramenta, de alguma forma vai estar aprendida. Então tem desdobramentos reais e possíveis tanto da nossa parte como professores/cineastas quanto das pessoas que aqui vão passar.

Lula Oliveira é jornalista e cineasta. Trabalhou como  assistente de direção nos longas Metragens: Três Histórias da Bahia (Direção: Sérgio Machado, Araripe Junior, Edyala Yglésias); Eu me Lembro (Direção: Edgard Navarro); Jardim das Folhas Sagradas (Direção: Pola Ribeiro), Cidade das Mulheres (Direção: Lázaro Faria), dirigiu os curtas metragens Horizonte Vertical e Na Terra do Sol. É Presidente da ABD/ABCV Bahia e trabalhou na Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.  Sócio Gestor da DocDoma Filmes.

Caio Araujo é cineasta e artista visual, tendo atuado como produtor e curador. Participou de diversos festivais do Brasil recebendo prêmios de melhor filme experimental e melhor filme de ficção no festival cidade filmada (2009). Em 2017 realizou sua primeira exposição individual, intitulada 'O tratado das fusões' no Museu de Arte da Bahia e seu primeiro longa metragem ‘Elogio à utopia’ que ganhou o prêmio de melhor longa baiano no Panorama Internacional Coisa de Cinema de 2017.

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