Revisitando A Tempestade - Agatha Couto


O naufrágio da primeira cena do primeiro ato da peça, numa gravura de 1797 baseada numa pintura de George Romney.

Li “A Tempestade” pela primeira vez no inicio do ano, quando a Livre começou a conhecer o texto, e posso dizer que gostei o tanto que uma pessoa que pouco lê peças – e Shakespeare – pode gostar. Após um mês de leitura, o gosto ficou maior. Acho que não só a repetição, mas principalmente as discussões em grupo, o entendimento e o que para mim dá sabor aos escritores – a imaginação incrementada – foram os responsáveis por isso.

E então o larguei. Do mesmo jeito que soltei a Livre, soltei o texto, ele ficou ali, na gaveta, implorando para ser revisitado e nunca dispensado completamente. A oficina de O’Shea foi quando voltei para ele, meses depois, em um grupo que não o tinha largado e que já discutiam de uma outra visão, e com a presença de um especialista em Shakespeare, que nos trouxe tantos outros pontos.

Sinteticamente, “A Tempestade” fala de colonização, de dominação. Mas como poucas coisas na vida são simples, O’Shea mostrou como esse mesmo texto foi entendido e apresentado de tantas maneiras distintas. Ora pela visão de colonizador, ora pelo ponto de vista do colonizado – que por vezes se identificou com Ariel ou com Caliban. Isso modelava os tons da história, dos personagens, das relações; era a influência de diferentes momentos históricos, de diferentes países no qual a peça  foi encenada.

O encontro com O’Shea me fez enxergar facetas possíveis e reais de cada personagem, o que aprofunda ainda mais o significado da peça como um todo. Desmembrando cada frase a frase, com o texto original de um lado, e as traduções do outro, o “teu” passava a ser “dele”, a fala de um, na verdade era a fala de outro, e até a piada, quando melhor traduzida, fazia sentido, tornou ainda mais possível compreender os contextos, o que determinadas expressões significavam em outras épocas ou para o povo londrino, e que para nós, pouco significava.

Para minha vida, esse foi o maior legado dessa oficina. Essa verdade escancarada de que os contextos e pontos de vista são cruciais para compreender tudo. De como ideias muitas vezes são só ideias, suspeitas, não fatos, os vilões e heróis não passam disso, de ideias. Como Próspero pode ser sofrido e causador de sofrimento, como Miranda pode ingênua ou uma rebelde revoltada, como Caliban pode ser um violentador ou ainda um violado? E como todas essas possibilidades podem ter maior ou menor peso a partir do que levamos nas costas. “A Tempestade” é conduzida pelas nossas próprias mãos, cada um terá a sua própria versão da história.

Por fim, como uma verdade pode ser exposta de mil maneiras, sob várias condições, o que a faz “correta” seja talvez a escolha de quem a escuta. Porém, enquanto ouvintes (de todas as informações que nos chegam), devemos sempre ter em mente que, de maneira geral, há mais de um ponto para se avaliar. De que lado você estaria se “La casa de Papel”, por exemplo, fosse narrada por um dos sequestradores? Quantos pontos você escuta antes de defender algum? Quantas facetas dos vilões que habitam em ti você conhece? Quando vai perceber que ninguém é puramente um herói?

“A Tempestade” é sobre o opressor e sobre o oprimido. Também é sobre ideias, desejos, dor. É sobre caos, esperança, funções. É sobre vida e também sobre a pequenez humana diante da Terra, sobre as ilusões e criações sociais. Menos pompa, mais respeito, pois quando o vento uiva, os trovões gritam, e a onda sobe, a ideia que você tem de você nada mais é do que apenas uma ideia.

Agatha Couto
Participante da Universidade Livre do Teatro Vila Velha e membro do elenco de A Tempestade 

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