Os fantasmas do Vale do Silício - Miguel Campelo
Se nas grandes cidades já nos preocupa o sequestro mental que a internet, via insidiosos smartfones, tem feito em nossas vidas, imaginem no campo!
Chegado
para trabalhar com o teatro da terra no Assentamento Todos os Santos,
território cearense de reforma agrária na zona rural do Canindé, a preocupação
primeira que me foi apontada pelas atrizes e atores do bravo Grupo Carrapicho
foi essa. Se por um lado, a inclusão digital encurtou distâncias para esses
sertões e permitiu a expansão de conhecimento e acesso à informação, por outro
lado, a internet e suas "redes sociais" representam ironicamente a
principal ameaça de desmobilização da sociabilidade local, além da arrasadora
descaracterização de sua vida cultural, em comportamento e produção artística.
Diante
disso, o governo bolsonaro e seu inominável malefício ao país, que a princípio
pensei ser a pauta mais urgente para debulharmos em cena, pareceu-me enfim
eventual. Um mal passageiro de menor gravidade que terá o seu fim, como de
resto tudo o que representa, no inescapável movimento da História. Entretanto,
só sobreviveremos às tormentas desde que nos mantenhamos inteiros.
Quando em
2013 estive aqui pela primeira vez para facilitação de oficinas teatrais,
estava recém inaugurada a Casa de Cultura da Reforma Agrária. Um espaço muito
bem equipado para as mais variadas atividades. Proposta pelo PACRA (Projeto
Arte e Cultura na Reforma Agrária) criava-se naquele ano a Escola de Teatro da
Terra, com uma turma de jovens de dez assentamentos do estado do Ceará reunidos
em Todos os Santos. Àquela época, embora já houvesse por aqui conexão com a
internet e wi-fi aberto, graças à ausência de smartfones e uma ínfima adesão
dos integrantes às redes sociais, isso não representou nenhuma preocupação.
Tanto foi assim que em nosso material dramatúrgico tratamos de uma estória de
amor dificultada pelo êxodo rural. Problemática que veio a se modificar
consideravelmente nos últimos anos passando a fazer parte de um imaginário
sobre a vida camponesa que já não corresponde mais do mesmo modo à realidade.
Nos últimos
quinze anos, impulsionadas pelas políticas de inclusão dos governos petistas,
desde a chegada de luz elétrica até a construção de Institutos Federais e
campus universitários, as comunidades rurais se aproximaram mais da vida dos
centros urbanos. As projeções de futuro de um jovem camponês hoje já não se
restringem somente às mesmas áreas de uma década atrás. Mas no rastro da
garantia de direitos, mobilidade social, aumento de poder aquisitivo e em
linhas gerais maior consciência deste jovem de sua localização no mapa mundi,
também lhe chegam em avalanche os valores da sociedade capitalista do século
XXI. Que anticorpos são necessários para evitar tamanha contaminação? Já os
temos ou é preciso cria-los em reação aos acontecimentos? É nesta tarefa que o
grupo Carrapicho, do Ceará, pretende se debruçar.
Não se
trata somente das comunidades protegerem suas tradições e produção artística da
hegemonia cultural. Mas também de prevenirem-se da ameaça de contaminação nas
suas formas de organização social, a maioria cooperativadas, colaborativas,
inclusivas e não hierarquizadas. Assim é pensada e vivida a cidadania da
reforma agrária. Assim ela resiste no país como modelo "orgânico" de
vida social em contraponto aos venenos da sociedade capitalista: exploração,
consumo, exclusão, competição...
Entretanto,
de cada telefone celular da comunidade vem a infiltração desses valores. Os
jovens principalmente, ao construirem perfis em redes sociais, enquanto
oferecem de bom grado suas informações aos magnatas do Vale do Silício e se
orientam pela cartilha de tendências propostas por estas plataformas para a
composição de suas personas digitais, abrem portas e subjetividades para o
colonizador. A invasão não vem somente através dos conteúdos acessados, mas na
própria arquitetura do software que, por extensão, reprograma também hábitos e
pensamentos do indivíduo que o utiliza.
Todos os
usuários de redes sociais temos hoje nossos duplos digitais. Clones de nós
mesmos que existem e se expressam adaptados à linguagem e valores do ambiente
virtual. Que respondem mais a algorítmos e pesquisas programadas de mercado do
que às nossas malhas humanas de sociabilidade. Enquanto os alimentamos com
dados reais de nossas vidas, e por isso cremos sermos autenticamente espelhados
neles, em realidade o processamento desses dados os torna absolutamente
diferente de nós. O eu digital é um outro. Mesmo quando desligamos nossas
máquinas, eles não deixam de existir naquele ambiente, aptos a receberem
informações e upgrades, contabilizados como ativos no sistema. Estão lá, já
desligados e independentes de nós, seus criadores. São eles os fantasmas do
Vale do Silício.
Nós usamos
a máquina ou máquina que nos usa?
E se estes
fantasmas, dotados já de consciência própria, como inteligências artificiais,
entrassem em conflito com seus criadores? E se surgissem misteriosamente
materializados diante de nós para tomar-nos as rédeas de nosso futuro? Assim
nasceu o mote para a dramaturgia do novo espetáculo do grupo Carrapicho. Uma
fábula sertaneja de ficção científica que contará a invasão destas terras do
sertão cearense pelos Fantasmas do Vale do Silício.
(Miguel
Campelo é teatreiro de rua, drag queen e ator da Companhia Teatro dos Novos)
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