João Branco, diretor teatral, escreve sobre Drácula
Drácula, teatro total
Foto Tai Oliver
Muitas vezes falamos do enorme potencial do teatro. E quando nos apercebemos disso, nos espantamos também com a quantidade de peças – logo recursos, tempo e paciência – que desperdiça esse potencial que a arte cénica tem e disponibiliza. Porque no teatro, na arte cénica, tudo cabe. É a forma de expressão artística que enquadra todas as outras, a interpretação, a arte plástica, a música, a arquitetura, o audiovisual, a coreografia, a poesia. Além do mais tem essa vantagem suprema de se apresentar, enquanto obra de arte, olho no olho do público, que permite que se cheire, que se toque, que aconteça um tipo de provocação, de comunicação diferente de qualquer outra no momento da apresentação da obra ao seu público. A peça Drácula, de Márcio Meirelles, vem nos lembrar isso mesmo de uma forma arrebatadora.
Em primeiro lugar, destaca-se a forma brilhante como o Teatro Vila Velha é ocupado na concepção cenográfica de Márcio Meirelles: toda a lógica do teatro à italiana inverte-se lembrando a estruturação do espaço cénico da escola elisabetana, que contemplava uma visão de baixo para cima da maioria do público (aquele que se situava ao nivel do solo), com um proscénio mais acentuado. Neste caso, quando entramos no teatro, somos confrontados com uma imensa plataforma inclinada, solução brilhante conseguida com a aplicação de um tecido flexível preto na bancada do teatro, onde estão também colocados os instrumentos musicais – uma bateria, um sintetizador, um baixo e uma guitarra – e onde decorre a maioria das cenas, e uma extensa mas estreita estrutura que atravessa toda a sala, sendo o público colocado de um lado e de outro da mesma. Em torno da plataforma frontal, um enorme painel branco, exposto em u aberto, que serve para ao longo de toda a peça, projetar o complemento audiovisual que é tão poderoso que poderia facilmente ter vida própria e afirmar-se enquanto obra de arte autónoma.
É isso que mais fascina em Drácula: o conjunto de linguagens artísticas e dramatúrgicas com que somos confrontados são tão bem construídas que no seu conjunto dão corpo a uma obra cénica excepcional e que separadas tem, pela sua qualidade, possibilidade de serem apresentadas como criações artísticas válidas autónomas, plenas de intensidade e contemporaneidade. Estamos perante um espetáculo narrativo, mas não só. Um espetáculo que podia ser e existir enquanto concerto musical, na belíssima e intensa partitura musical de João Meirelles (aliás, quando o público entra na sala é confrontado com um show musical que decorre no espaço cénico, com os atores tocando os diferentes instrumentos musicais); que podia ser e existir enquanto filme, na extraordinária sequência visual projetada e que envolve personagens e público durante as duas horas de duração da peça; que podia ser e existir enquanto coreografia, porque sendo o estilo de interpretação propositadamente narrativo, o corpo vai falando enquanto a personagem conta o pedaço da sua história e enquanto este pedaço de história é relatado, outros corpos se movem e interagem no espaço, ao mesmo tempo que outros tocam os instrumentos que de forma marcada foram colocados na enorme plataforma; podia existir enquanto poesia porque a inteligente versão de Márcio Meirelles leva-nos a ser ouvintes de uma envolvente história de ódios, amores, confrontos, paixões, violência, coragem, misticismo, plena de humanidade. Estamos perante uma amostra do que Wagner sonhou para a sua ópera, uma obra de arte total (gesamtkunstwerk), ou seja, uma obra que conjuga de forma harmoniosa e competente a música, o teatro, o canto, a dança e as artes plásticas.
Feliz também a concepção dos figurinos e maquilhagem, do diretor Márcio Meirelles, os primeiros com longas camisas brancas rendilhadas e longos sobretudos pretos, reforçando o carácter monocromático da peça e conferindo um suplemento dramático ao aparecimento da cor vermelha nos momentos de maior tensão, no filme ou no único adereço de cena utilizado enquanto tal, uma pena vermelha; a segunda com as máscaras brancas pintadas em todas as faces dos atores, sem distinção de personagem, construindo um corpo hermafrodita que atua ora em uníssono, respirando, tocando e falando, ora em sutis dissonâncias e harmonias vocais e sonoras. Com isso se cria um ambiente sonoro e visual diferenciado e identificável para cada personagem, ambiente esse complementado pelo competente desenho de luz de Pedro Dultra, e que envolve e identifica o público no decorrer e desenvolvimento da história.
O toque brecthiano, com a apresentação, antes da cena final da perseguição ao Conde Drácula, do pressuposto político desta produção, coloca os pontos todos nos ís. Não estamos perante um objeto lúdico, mormente toda a sua beleza e a forma como toca nossos sentidos. Estamos perante uma declaração política: o monstro, esse vampiro que nos suga até ao tutano, que nos explora, que nos desrespeita, é esse sistema capitalista que continua a cavar o fosso entre quem mais tem e quem menos pode. Essa a grande metáfora de Drácula.
E quem dá corpo a esse belíssimo manifesto artístico e político é um elenco competente constituído por Ciro Sales, Igor Epifânio, Lis Luciddi, Luisa Proserpio, Rafael Medrado e Will Brandão, que contou com a participação especial de Fernando Fulco como Van Helsing e Bertho Filho como Renfield, que complementam de forma brilhante o elenco da SuperNova Teatro.
A maior dificuldade desta proposta pode ser colocada na compreensão plena do texto, que é denso e extenso, dada a enorme quantidade de estímulos com que o público é confrontado ao longa da apresentação. A opção da amplificação sonora das vozes dos atores em cena compreende-se pela presença constante da trilha sonora, quase toda ela tocada ao vivo. Mas nada disso desmerece ou diminui o que se vê ou se ouve, antes pelo contrário, dá vontade de ir ver de novo. Porque esta não é uma peça que se veja de novo, é uma peça que se vê diferente mesmo que se repita. Ou porque estamos num local diferente da sala, mais atrás, mais à frente, de um lado ou do outro, ou porque estamos predispostos para ficar mais atentos à música, ao filme, ao texto, ao movimento e a tudo o mais que esta peça de teatro é capaz de nos ofertar. Uma peça de teatro que reforça, pelo tema e pela direção de Márcio Meirelles, o caráter simbólico e cerimonial da arte cénica. Ou seja, um teatro que não tem vergonha de ser teatro.
Salvador, 13 de janeiro de 2013
João Branco
Encenador cabo-verdiano
Diretor do Mindelact e do Centro Cultural Português no Mindelo
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