Drácula vs. Drácula*


Foto Tai Oliver (Espetáculo Drácula)

Adaptar é? O Hoauiss define de várias formas, pois essa é uma daquelas palavras que ao longo da evolução adquiriu inúmeros significados, pode ser adequar uma coisa a outra, utilizar algo para um fim diferente ao que se destina, também pode ser a capacidade de acomodar-se a outro meio, ambientar-se. Todos essas definições, de uma certa maneira, podem ser empregadas quando falamos em adaptação de uma obra literária para o meio audiovisual, como TV e cinema, para teatro e até para a música, porque mesmo transpondo e sendo fiel ao texto, nunca essa transposição será a mesma 'coisa', portanto ela também vai acomodar-se em novo meio, adaptando-se, mas transformada em outro produto. Claro, há as diversidades de modificação, podendo ser baseada em, inspirada em, ou a transposição propriamente dita, mas, mesmo assim, o resultado final ainda é uma nova criação.


A cineasta Suzana Amaral, que adaptou a obra “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, disse em entrevista que o livro serviu como pano de fundo, onde ela se apropriou das pistas para criar uma nova obra a partir da original. O diretor Walter Salles, encontrou correlação entre a história do Albanês Ismail Kadaré em “Abril Despedaçado”, que acontece na Albânia, e o sertão nordestino, parecia impossível, mas há relação. Quem já não ouviu os relatos das brigas travadas em nome da honra que dizimam várias famílias? É algo que faz parte do nosso conhecimento. Apesar de transpor a ação de um continente para outro, ele foi quase fiel a obra, determinados fatos, passagens e ações permanecem, mas de um modo totalmente diferente e com uma leitura nova.

Alguns livros já parecem nascer com essa veia audiovisual, a exemplo do baiano Jorge Amado cuja obra rendeu cerca de 20 filmes, fora as adaptações para a TV. Essa característica parece estar presente no livro do irlandês Bram Stoker, em 1922 houve a primeira transposição para o cinema feita pelo alemão Murnau com “Nosferatu”, aliás uma adaptação muito importante e  tem influenciado, de alguma forma, todas as que se seguiram.. O livro, um romance escrito em 1897 de forma epistolar, em príncipio não teria esta força cinematográfica, mas a cada adaptação foi acrescentando-se a ela uma nova dimensão ao texto e, no final, para mim, o livro torna-se bem melhor do que realmente é.

Quanto a película “Drácula de Bram Stoker”, de Francis Ford Coppola, considero a melhor das adaptações de Drácula para o cinema, o cineasta respeita a estrutura e as palavras do texto original, mas o resultado é um formato construído com base na funcionalidade dramática, afinal o livro é recheado de cartas, matérias de jornal, diários, então transformar e traduzir isso em ação é um desafio e Coppola conseguiu. O diretor manteve a crítica a sociedade que nascia baseada na revolução industrial e no capitalismo, aquela que acreditava na ciência e nos novos brinquedos tecnológicos que surgiam, mas que mesmo assim sucumbia ao mistério e a magia. Coppola deu humanidade ao personagem de Drácula, e o transformou em algo tão sedutor, que aquela vida marcada pela certeza, sob o guarda-chuva da igreja e dos bons costumes é desinteressante, quase queremos nos tornar um vampiro também. A boa mão do diretor trouxe várias referências do filme “Nosperatu”, com o jogo de sombras, como também de referências pop dos filmes trashs de terror e os épicos, é uma salada bem composta. Também ajudam a cristalizar essa obra as boas atuações,  mesmo com textos iguais ou bem similares ao do livro, os atores conseguiram imprimir vibração e força dramática às falas.

Se no filme de Coppola Drácula é o grande personagem, o desencadeador das ações, na transcriação de Márcio Meirelles para o teatro, Drácula encarna aquilo que a nova sociedade recém capitalista vê como o mal, talvez um mal que esteja dentro de nós mesmos. Na peça, Drácula não é uma pessoa, ou um vampiro, podendo ser apenas um sentimento, uma ação, ele está ali, mas é abstrato, só vemos as consequências de sua existência através dos diálogos, sensações ou representações dos vídeos. O espetáculo é muito bem pensado, as falas e textos são absolutamente fiéis ao livro, mas a forma como são colocadas torna essa adaptação única e diferente do que já foi feito. Os vídeos dialogam com as interpretações dos atores, inclusive muitas vezes parecem ter mais força dramática que os próprios que estão em cena. A edição brinca com as representações dos textos, ora sendo cenário, ora ambientação, ora ator, às vezes, a excessiva ilustração cansa, mas nada que tire a importância dos vídeos, aliás considero uma das melhores utilizações do audiovisual que já vi em teatro.

Meirelles é muito inteligente na disposição do espaço cênico, apesar de um palco mais vazio ele está sempre preenchido, a banda formada pelos atores costura as emoções através da trilha e vice-versa, diria que a música é também um personagem. Márcio traz uma dimensão maior para a obra de Bram Stoker e isso é jogado no final, um final vibrante e poético, inclusive quando parece que os atores conseguem se apropriar do texto. A peça é um trabalho de adaptação muito bem feito, apesar do texto estar literal, ela cria algo novo e que pode ser entendido em qualquer cultura, nos defrontamos com nossos medos internos, como a morte, não conseguir ter domínio do próprio corpo, ou ser alguém manipulável, ou não saber para que lado seguir, onde está o bem e o mal, devo acreditar no divino ou na ciência, quem vai nos salvar.? Só considero que a leitura do espectador pode ser muito comprometida pela atuação, muitas vezes o texto é jogado, quase verborrágico, vira um mantra onde é difícil capturar a intenção da fala, mas no final a peça é realmente um espetáculo para todos os sentidos.

Impressionante que as duas obras analisadas, tanto o filme como a peça, são bastante reverentes ao texto do livro, mas cada uma encontrou um caminho diferente, os dois diretores lançam mão de suas “licenças dramáticas/poéticas” para produzir algo totalmente novo e que permitem leituras distintas sobre o livro e acredito ser essa uma das funções da adaptação, revelar o que estava nas entrelinhas da obra original e, nisso, os dois conseguem.  

*Texto: Andréa Conceição do Bonfim4º semestre de produção audiovisual da UNIJORGE

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