SOBRE ROMEU & JULIETA - por José Roberto O'Shea
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Cena de "Romeu & Julieta". Foto: Diney Araujo
A julgar pela concepção, preparação e pela encenação, em si, espectador nenhum sairá de casa em vão para assistir à montagem de Romeu e Julieta, dirigida por Marcio Meirelles, à frente dos participantes da Universidade Livre do Teatro Vila Velha.
Na coletânea de textos compilados no programa do espetáculo, Marcio assina um ensaio intitulado “N é a Cotovia é o Rouxinol”, de onde se depreende sua sofisticada e clara concepção -- plena consciência mesmo – acerca da complexidade de se montar Shakespeare, em geral, e R&J, em particular. No plano geral, montar Shakespeare, para Marcio, é atravessar “densas camadas de academicismo erudição inócua despolitização puritanismo lançadas com o tempo sobre um teatro popular político vivo ativo erótico violento cruel (sic)”. No plano específico, Marcio aponta que R&J costuma ser apresentada apenas “como uma comovente história de amor malsucedido” e, já sinalizando sua visão não-reducionista, propõe a peça como “uma luta entre gerações um confronto de gêneros uma disputa entre razão e paixão (sic)”. Mais do que um texto lírico e romântico, R&J é concebido por Marcio como “uma peça sobre as consequências do ódio da disputa política da quebra da ordem e da busca por uma nova ordem (sic)”.
Plenamente consciente da complexidade do desafio imposto por esse R&J que pretende ir além da dimensão lírica e romântica, Marcio investe na preparação do elenco e do espetáculo. No ensaio já citado, ele registra a imperiosa necessidade de se ter um elenco, e se refere ao jovem elenco da Universidade Livre, composto por atores em plena formação, uma trupe com idade média de 22 anos, sendo a maioria de 18 a 20. A fim de que essa montagem de R&J fosse transformada em experiência pedagógica e social para um elenco jovem e relativamente inexperiente, a preparação foi intensa, envolvendo um total de 65 colaboradores. Foram criados quatro experimentos, iniciando pelo estudo e interpretação de sonetos shakespearianos, passando por leituras diversas, discussão de espaços e chegando ao que se denominou “caminhada geográfica”, quando o grupo saiu às ruas, ao Campo Grande, como Montéquios e Capuletos, improvisando lutas e até distribuindo “romeus e julietas” (queijo com goiabada), testando ideias, ouvindo transeuntes. Esse tipo de preparação não apenas inseriu os jovens atores no conturbado contexto social e político que naquele momento os cercava, como ensejou a sempre desejada construção coletiva e colaborativa, o “teatro coral” que configura, precipuamente, a proposta engajada da Universidade Livre.
O resultado da “caminhada geográfica”, da ida às ruas, reforçou a concepção não-reducionista do encenador, que topicalizava a noção de confronto, de um confronto de todos nós, noção esta que, por sua vez, desaguou na bastante original ideia “SomosTodosRomeuEJulieta”, que, por seu turno, propiciou a igualmente original identidade visual do espetáculo, bem capturada no cartaz em preto e branco, com o ousado beijo de todas e todos. A partir dessa democratização temática, concebe o encenador: “todos amamos e somos vítimas do ódio e das disputas políticas q n levam em conta o bem estar coletivo e a nossa capacidade de amar (sic)”.
E dada essa democratização temática, se somos todos Romeu e Julieta, somos todos, Ama, Páris, Príncipe Éscalo, Frei Lourenço, etc. Portanto, na encenação desse R&J, coadunando-se com a proposta temática, temos uma atrevida e desafiadora democratização dos papéis: diversos atores desempenham os mesmos personagens, a despeito de gênero. Se, de início, esse doubling – aliás, “Elisabetano” -- talvez crie alguma dificuldade de compreensão para alguns espectadores, marcantes signos de figurino (por exemplo, guirlandas, uma guitarra, um manto, uma coroa, colares) logo promovem a elucidativa mediação do “truque”. O palco – novamente, “Elisabetano” – surge, leve e agil, ora como Verona, ora como Mântua, muitas vezes adornado, coreografado, pela eloquente (e nem sempre verbal) dramaturgia do povo da cidade e dos perplexos criados das duas abastadas famílias. E a democratização temática se traduz, ainda, na presença igualitária e solidária dos atores em cena, atuando ou enquanto espectadores, produzindo música e paisagem sonora diegética e extradiegética.
Diante dos desafios impostos e confrontados pelo encenador, não apenas espectador nenhum sairá ileso. Tampouco ator algum sairá imune desse intenso “processo como produto”, seja enquanto praticante de Arte Dramática, seja enquanto cidadão Livre.
05/01/2017
José Roberto O’Shea*
*O´Shea é bacharel pela Universidade do Texas, mestre em Literatura pela Universidade Americana e PhD em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de Norte Carolina. Como research fellow , realizou estágios de pós-doutoramento no Instituto Shakespeare da Universidade de Birmingham e na Universidade de Exeter.
A julgar pela concepção, preparação e pela encenação, em si, espectador nenhum sairá de casa em vão para assistir à montagem de Romeu e Julieta, dirigida por Marcio Meirelles, à frente dos participantes da Universidade Livre do Teatro Vila Velha.
Na coletânea de textos compilados no programa do espetáculo, Marcio assina um ensaio intitulado “N é a Cotovia é o Rouxinol”, de onde se depreende sua sofisticada e clara concepção -- plena consciência mesmo – acerca da complexidade de se montar Shakespeare, em geral, e R&J, em particular. No plano geral, montar Shakespeare, para Marcio, é atravessar “densas camadas de academicismo erudição inócua despolitização puritanismo lançadas com o tempo sobre um teatro popular político vivo ativo erótico violento cruel (sic)”. No plano específico, Marcio aponta que R&J costuma ser apresentada apenas “como uma comovente história de amor malsucedido” e, já sinalizando sua visão não-reducionista, propõe a peça como “uma luta entre gerações um confronto de gêneros uma disputa entre razão e paixão (sic)”. Mais do que um texto lírico e romântico, R&J é concebido por Marcio como “uma peça sobre as consequências do ódio da disputa política da quebra da ordem e da busca por uma nova ordem (sic)”.
Plenamente consciente da complexidade do desafio imposto por esse R&J que pretende ir além da dimensão lírica e romântica, Marcio investe na preparação do elenco e do espetáculo. No ensaio já citado, ele registra a imperiosa necessidade de se ter um elenco, e se refere ao jovem elenco da Universidade Livre, composto por atores em plena formação, uma trupe com idade média de 22 anos, sendo a maioria de 18 a 20. A fim de que essa montagem de R&J fosse transformada em experiência pedagógica e social para um elenco jovem e relativamente inexperiente, a preparação foi intensa, envolvendo um total de 65 colaboradores. Foram criados quatro experimentos, iniciando pelo estudo e interpretação de sonetos shakespearianos, passando por leituras diversas, discussão de espaços e chegando ao que se denominou “caminhada geográfica”, quando o grupo saiu às ruas, ao Campo Grande, como Montéquios e Capuletos, improvisando lutas e até distribuindo “romeus e julietas” (queijo com goiabada), testando ideias, ouvindo transeuntes. Esse tipo de preparação não apenas inseriu os jovens atores no conturbado contexto social e político que naquele momento os cercava, como ensejou a sempre desejada construção coletiva e colaborativa, o “teatro coral” que configura, precipuamente, a proposta engajada da Universidade Livre.
O resultado da “caminhada geográfica”, da ida às ruas, reforçou a concepção não-reducionista do encenador, que topicalizava a noção de confronto, de um confronto de todos nós, noção esta que, por sua vez, desaguou na bastante original ideia “SomosTodosRomeuEJulieta”, que, por seu turno, propiciou a igualmente original identidade visual do espetáculo, bem capturada no cartaz em preto e branco, com o ousado beijo de todas e todos. A partir dessa democratização temática, concebe o encenador: “todos amamos e somos vítimas do ódio e das disputas políticas q n levam em conta o bem estar coletivo e a nossa capacidade de amar (sic)”.
E dada essa democratização temática, se somos todos Romeu e Julieta, somos todos, Ama, Páris, Príncipe Éscalo, Frei Lourenço, etc. Portanto, na encenação desse R&J, coadunando-se com a proposta temática, temos uma atrevida e desafiadora democratização dos papéis: diversos atores desempenham os mesmos personagens, a despeito de gênero. Se, de início, esse doubling – aliás, “Elisabetano” -- talvez crie alguma dificuldade de compreensão para alguns espectadores, marcantes signos de figurino (por exemplo, guirlandas, uma guitarra, um manto, uma coroa, colares) logo promovem a elucidativa mediação do “truque”. O palco – novamente, “Elisabetano” – surge, leve e agil, ora como Verona, ora como Mântua, muitas vezes adornado, coreografado, pela eloquente (e nem sempre verbal) dramaturgia do povo da cidade e dos perplexos criados das duas abastadas famílias. E a democratização temática se traduz, ainda, na presença igualitária e solidária dos atores em cena, atuando ou enquanto espectadores, produzindo música e paisagem sonora diegética e extradiegética.
Diante dos desafios impostos e confrontados pelo encenador, não apenas espectador nenhum sairá ileso. Tampouco ator algum sairá imune desse intenso “processo como produto”, seja enquanto praticante de Arte Dramática, seja enquanto cidadão Livre.
05/01/2017
José Roberto O’Shea*
*O´Shea é bacharel pela Universidade do Texas, mestre em Literatura pela Universidade Americana e PhD em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de Norte Carolina. Como research fellow , realizou estágios de pós-doutoramento no Instituto Shakespeare da Universidade de Birmingham e na Universidade de Exeter.
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