Márcio Meirelles, criador artístico, homem de teatro, tem nos últimos anos desempenhado o cargo de Secretário da Cultura do Estado da Bahia. Encenou "Bença", o mais recente espectáculo do Bando de Teatro Olodum. O palco, a política, condições conflituantes? A esta e outras questões, suscitadas por cenaberta, respondeu Márcio Meirelles, via e-mail.
Durante o seu mandato enquanto Secretário da Cultura da Bahia, quais foram as prioridades e os principais problemas que enfrentou? Primeiro, reconhecer que a Cultura é um direito de todos e que cada cidadão é um produtor de cultura e tem que ter acesso aos meios de produção e aos bens culturais produzidos, ao seu patrimônio e à sua memória. E, se é um direito básico do cidadão, é um dever do Estado cuidar para que todos gozem desse direito. Depois e por isso, descentralizar, democratizar e institucionalizar as políticas culturais. Descentralizar setorialmente. Estendendo os programas da Secretaria a um espectro mais amplo de ações da sociedade. Expandindo para outras áreas, além das linguagens artísticas, como por exemplo a moda, o design, a gastronomia, a cultura digital, as culturas identitárias dos povos indígenas, quilombolas, ciganos, para as culturas populares e sua produção, para as festas.
Também descentralizar territorialmente. A Bahia é maior que a França, temos 417 municípios, agrupados em 26 territórios de identidade. Entendemos que não seria possível trabalhar para o Estado inteiro se não trabalhássemos em rede, se não trabalhássemos com as prefeituras. Então, desde o início do mandato, temos promovido encontros, oficinas de qualificação dos gestores municipais de cultura. Eles criaram um fórum, que se transformou em associação. Estão sempre se mobilizando e articulando informações e ações.
Temos também uma rede de 26 representantes territoriais da Secretaria. São nossos braços. São responsáveis por acompanhar as nossas políticas e ações em todos os territórios.
Por fim, institucionalizar essas políticas. Elaboramos um projeto de Lei Orgânica da Cultura que vai consolidar boa parte delas definindo o que é Cultura, que atividades sociais se enquadram no escopo das atividades da Secretaria, e como o Estado deve atuar nesse setor. Cria o Sistema Estadual de Cultura, e outros marcos importantes para tirar as atividades culturais da informalidade. Reconhece também a cultura como eixo de desenvolvimento e geração de economia sustentável local. Este projeto de lei foi construído a partir de várias consultas públicas, inclusive em duas Conferências Estaduais – em cada uma mobilizamos em torno de 40 mil pessoas para discutir prioridades e diretrizes que resultaram na Lei e são base para o Plano Estadual de Cultura. Que resultados conseguiu realmente? Os resultados mesmo virão em médio prazo, porque trabalhamos nas bases, nos conceitos, na criação de infraestrutura.
De imediato posso dizer que resultou num aumento qualitativo e quantitativo de propostas, vindas de todos os territórios e, agora, fazendo o balanço de quatro anos, fizemos mapas onde pode-se ver bem distribuídos os novos 150 pontos de cultura, podemos reconhecer, em sistema, as mais de 200 unidades museais; podemos constatar que, com as 150 bibliotecas municipais que implantamos, zeramos o número de municípios sem bibliotecas; podemos ver que contemplamos projetos propostos por todos os territórios e apoiamos a circulação de projetos em todos também.
Podemos dizer que, este ano, tivemos em Salvador mais de 60 estreias de novas peças de teatro, o que é um recorde. Que a música baiana agora é reconhecida em sua pluralidade e o setor tem se organizado mais, participando de feiras internacionais e promovendo encontros e fóruns que levam em conta a nossa inserção no mercado nacional e internacional. Temos agora quatro festivais internacionais de artes cênicas por ano, dois de dança e dois de teatro. E em torno de mais de dez festivais, encontros e mostras anuais em vários municípios. O que promove uma troca fantástica entre os produtores do interior e da capital.
Triplicamos o número de visitantes nos museus, aumentando suas área expositivas e horários de funcionamento, além de um programa intenso de exposições contemporâneas e de acervos, acompanhadas de programas de visitação e educativos. Temos uma coleção de 63 peças de Rodin, cedidas em comodato pela França durante três anos.
Quanto ao intercâmbio internacional e, em particular, ao intercâmbio na lusofonia, que sempre defendeu, o que é que ficou por fazer e, eventualmente, guardaria para um segundo mandato? Criamos mecanismos de apoio a residências e intercâmbios através de editais. Isso foi uma coisa genérica, para artistas locais viajarem ou virem artistas de
qualquer país. Quanto a programa específico para a CPLP, estivemos na coordenação de um concurso de documentários para as TVs públicas, o Doc TV CPLP, um programa nacional.
Agora assinamos esse termo de cooperação com a Cena Lusófona e uma próxima gestão poderá trabalhar melhor para a promoção de atividades da lusofonia nas artes cênicas e poderemos avançar para outras áreas. Toda a sua vida foi a de um criador artístico, um fazedor teatral, envolvido nos problemas relativos à afirmação da arte e do teatro nos diversos contextos sociais e políticos do Brasil. Durante os últimos anos usou um outro boné, o da política, o que é, aparentemente, contraditório. Como resolveu essa contradição? Essa dupla condição foi conflituante? Acha que terminou a sua missão desse lado e tem vontade de regressar? O facto de ter assinado o último espectáculo do Bando, "Bença" (aliás, belíssimo), é uma espécie de resposta? É mais uma espécie de questão. Creio que os espetáculos sempre são perguntas sem respostas. E fazer essas questões, instigar, é o meu ofício. Não há contradição alguma entre o cargo que ocupo agora e ser artista, no caso encenador. O que faço no teatro? Transformo um discurso em ação, através de uma equipe de colaboradores, para que esta ação, de alguma forma, transforme a sociedade. É o que faço como secretário de Cultura.
Como fazedor teatral, tive que virar gestor, porque entendi que a melhor maneira de atuar politicamente com meu discurso cênico, seria através de um grupo, razoavelmente fixo, de artistas colaboradores. Sempre fiz teatro de grupo, mesmo quando dirigi elencos. Depois um grupo pede uma casa, e coordenei a gestão de o centro cultural A Fábrica, nos anos 80, e, a partir de 94 até 2006, o Teatro Vila Velha. Quando você é gestor de um grupo e de um teatro, você desenvolve políticas públicas de atuação, portanto questiona as políticas do Estado, interage com elas e deve interferir em suas formulações e execuções. Portanto do lugar de artista, produtor e gestor cultural sempre fiz e discuti políticas públicas para a cultura.
Quando o governador Jaques Wagner me convidou para assumir o cargo, não tinha como não aceitar. Se esse foi o meu discurso o tempo inteiro e alguém, em quem confio, me chama para participar de um programa político, no qual concordo, para efetivar e tornar ação esse discurso e com isso promover o desenvolvimento da Bahia, tinha que aceitar e dar o máximo de mim para tornar esse programa vitorioso. Não estou satisfeito, porque o passivo era muito grande e a mudança proposta muito radical e ainda há muito por fazer. Mas tenho a sensação de dever cumprido. Demos alguns passos, outros são necessários, mas os que demos foram firmes e definiram caminhos que a sociedade está se apropriando e vai poder trilhar, cobrando do Estado que faça sua parte.
Quanto a Bença, mesmo com todas as tarefas, eu não podia deixar de dirigir o espetáculo comemorativo dos 20 anos do Bando de Teatro Olodum. Fui um dos fundadores do grupo e com ele vivi muitas coisas. Era preciso participar desse novo ciclo. Foi o que fizemos, inauguramos um novo ciclo do grupo com esse espetáculo. Agora, virão mais 20 ou sei lá quantos...
O que falta ao teatro baiano, na sua opinião, para se afirmar e desenvolver fora de portas? O teatro, no século XXI, está passando por um momento complicado. É o século da família das ferramentas digitais e virtuais. Século das comunidades. Do tempo real e espaço virtual. É um século que redefiniu muitas coisas a partir dessa tecnologia. E dentre essas, questões básicas para o teatro: a presença virtual, a reprodutibilidade e difusão dos discursos, as formas narrativas. Ao contrário do surgimento do cinema e da televisão que criaram novos suportes para a linguagem teatral e só a partir daí foi desenvolvendo linguagens próprias, as novas tecnologias vieram já com sua própria sintaxe. É preciso que o teatro dialogue com esse novo tempo, esse novo público, esses novos meios.
Na Bahia não é diferente. Ficamos muito tempo isolados do mundo, trocando muito pouco. Não tínhamos um festival de teatro internacional nem nacional, por exemplo. Circulamos muito pouco e só poucos de nós. Por outro lado vivemos uma política perversa que tornou a produção cultural dependente do Estado ou de patrocinadores. Nos importamos pouco com o público. E não no sentido de atender o que se quer ver, mas no de propor coisas que precisam ser vistas. Se, por um lado, 90% das peças montadas aqui são de autores locais, nosso isolamento do mundo só há pouco tempo começou a ser quebrado, trazendo oxigênio para a cena local. Nosso universo provinciano é muito forte. O lado bom é que temos muito material simbólico para trabalhar, o ruim é que achamos que nos bastamos,
alimentando “estrelas” e “gênios” locais que não resistem a um sopro maior de novidade. E que ignora o tempo atual que passa célere transformando tudo.
O teatro é um testemunho de nosso tempo presente. E o tempo agora é real, se o teatro não se apropriar disso e fizer seu discurso para o público do século XXI, vamos morrer sonhando com Moscou, em nosso jardim de cerejeiras, não entendendo porque as platéias estão vazias, culpando o Estado por isso ou o próprio público por não ter formação suficiente para ficar mais de duas horas vendo Tchékhov. Em outras palavras, o teatro baiano tem que sair de sua redoma e buscar e formar seu público. É preciso investir em educação, sim. Mas isso é uma tarefa de todos. Não só do Estado. entrevista de António Augusto Barros |
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