Clássico da dramaturgia espanhola, "Luzes da Boemia" estreia em Salvador com direção do equatoriano Santiago Roldós

A peça, escrita por Ramón del Valle-Inclán, inaugura o projeto "Teatro Épico na Bahia" e é fruto de residência artística de Santiago Roldós com a universidade LIVRE do teatro vila velha

Cena da peça "Luzes da Boemia". Foto: Michelle Vivas

Entre 6 e 16 de abril, o público soteropolitano terá a chance de conhecer, no palco, um dos textos mais emblemáticos da dramaturgia em língua espanhola. "Luzes da Boemia", do controverso escritor galego Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), ganha versão encenada pelo diretor Santiago Roldós (Equador) a partir de residência artística com a universidade LIVRE do teatro vila velha. O espetáculo inaugura o projeto "Teatro Épico na Bahia", realizado pelo Teatro Vila Velha, e permanece em cartaz de quinta a sábado, às 20h, e aos domingos, 19h, em curta temporada.

A obra narra as últimas horas de vida de Max Estrella, poeta cego e decadente, em uma peregrinação pelas ruas de uma Madri obscura e marginalizada, sempre  acompanhado pelo personagem Dom Latino de Hispális, o que faz lembrar o clássico "Dom Quixote". Escrita em 1920, publicada em capítulos, na revista "España", talvez tenha na acidez da sua crítica à sociedade espanhola o motivo pelo qual foi encenada pela primeira vez apenas em 1963, em Paris, e na Espanha ainda mais tarde, na década de 1970, quando Valle-Inclán já não era vivo.

"Ramón del Valle-Inclán é o autor espanhol mais latinoamericano, mais que Frederico García Lorca, por exemplo. Ele viveu muito tempo no México, viveu em Cuba, e lhe interessava muito a literatura e a realidade latinoamericanas. Essa obra fala da decadência de uma nação, fala da Espanha como potência e do lugar da cultura nessa decadência, da relação da arte com o poder", conta o diretor Santiago Roldós.

No Brasil, "Luzes da Boemia" foi montada poucas vezes. Há registro das versões do diretor William Pereira, em 1996, em São Paulo, e de Aderbal Freire Filho, em 2000, no Rio de Janeiro. Na atual versão criada entre Bahia e Equador, o elenco é composto de atores e atrizes já formados pela universidade LIVRE do teatro vila velha, bem como atuais integrantes do programa de formação. O primeiro encontro entre o grupo e Santiago Roldós aconteceu há exatamente um ano, em março de 2016, no Teatro Vila Velha, quando a proposta era criar uma dramaturgia própria a partir de exercícios de leitura, escrita e improvisação. Já de volta ao Equador, o encenador mudou de ideia e propôs ao grupo o texto de Valle-Inclán.

"Me pareceu que, neste texto, pelo qual estou apaixonado há muitos anos, havia coincidências nada óbvias, mas profundas, com a estrutura dramatúrgica que buscávamos construir com a universidade LIVRE. Estava aí a pergunta sobre o valor do artista e sua atividade poética em tensão permanente com a decadência e a corrupção generalizada de uma nação dividida e assolada pela iniquidade. Qualquer semelhança com a nossa realidade não é mera casualidade. É um esperpento", afirma Santiago Roldós.

Cena da peça "Luzes da Boemia". Foto: Michelle Vivas

Esperpento

É em "Luzes da Boemia" que Ramon del Valle-Inclán inaugura o "Esperpento", teoria e gênero literário. Na peça, o protagonista Max Estrella afirma: "Os heróis clássicos refletidos nos espelhos côncavos dão o Esperpento. O sentido trágico da vida espanhola só pode dar-se com uma estética sistematicamente deformada". O Esperpento nada mais é que a escolha de deformar a realidade para que se consiga refletir, mais fielmente, a própria realidade.

O "Esperpento" de Valle-Inclán encontra semelhanças com "Los caprichos", série de 80 gravuras do pintor espanhol Francisco de Goya que utilizava o grotesco para satirizar a sociedade espanhola, sobretudo o clero e a nobreza, pouco mais de cem anos antes, no final do século 18. As gravuras de Goya serviram não apenas de inspiração para a encenação de Santiago Roldós, mas para ilustrar a identidade visual do espetáculo que estreia no Teatro Vila Velha.

Teatro Épico na Bahia

"Luzes da Boemia" inaugura o projeto "Teatro Épico na Bahia", realizado pelo Teatro Vila Velha com o apoio financeiro do Governo do Estado da Bahia através do Fundo de Cultura - Secretarias da Fazenda e da Cultura. Segundo o superintendente de Promoção Cultural da SecultBA, Alexandre Simões, os Editais Setoriais têm o papel de apoiar artistas e iniciativas culturais que venham a agregar valor à cultura baiana. No caso do “Teatro Épico”, dá a oportunidade de o público acessar uma montagem com parceria internacional. “O projeto garante uma vivência com outras experiências, tanto para público quanto atores. Além disso, garante projeção e renovação do nosso teatro, permitindo que essa dinâmica que envolve dezenas de agentes culturais tenha continuidade”. O TVV também é apoiado pelo Programa de Ações Continuadas de Instituições Culturais, com recursos do Fundo de Cultura da Bahia.

Concebido pelo encenador Marcio Meirelles, o projeto busca colocar em discussão e trazer à cena montagens que têm como base esta forma de fazer teatro conceituada pelo dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht (1898-1956), mas presente em diversas dramaturgias, anteriores e posteriores ao seu legado. "O Teatro Épico é uma atitude crítica diante da vida, formada por uma série de elementos que criam uma dimensão reflexiva da narrativa. É como o teatro, enquanto linguagem, reflete a sociedade, os movimentos sociais, políticos, de modo que o público participe ativamente dessa crítica, dessa reflexão. Ao teatro épico, não interessa que o público seja apenas embalado por uma história emocionante, mas que, ao se emocionar, ele tenha a consciência crítica do que está em sua frente, perceba que aquilo pode ser mudado e que o agente da mudança é ele mesmo", explica Meirelles.

Para o encenador, o projeto, que tem ainda uma montagem inédita prevista para o segundo semestre de 2017, dialoga com o atual momento do Brasil. "Estamos numa batalha de narrativas. A gente vai sendo envolvido por narrativas hegemônicas, produzidas pelas redes de comunicação aliadas aos outros sistemas de poder - financeiro, político, judiciário - que tentam inclusive apagar outras narrativas, distorcer fatos. E o Teatro Épico, de certa forma, desmonta o processo da narrativa, expõe como elas são construídas", conclui.

Sobre Santiago Roldós

Guayaquil, 1970. Ator, diretor, dramaturgo e professor equatoriano, cofundador junto a Pilar Aranda do grupo Muégano Teatro, do Laboratório de Teatro Independiente e do curso de Teatro do ITAE. Seus textos “Palabras contra el silencio” e “Karaoke Orquesta Vacía” foram incluídos em antologias de teatro equatoriano contemporâneo da Universidad Científica del Perú e da Casa de América de Cuba, respectivamente. Sua direção de “La edad de la ciruela” de Arístides Vargas recebeu os prêmios Melhor Espectáculo e Especial do Público da VI Muestra Teatro de Barcelona (2001), e seu trabalho na imprensa rendeu dois Prêmios de Jornalismo do Diario El Comercio de Quito: o livro “Lecturas para zombis suicidas”, uma seleção de suas colunas de opinião na Revista Vistazo, a de maior circulação em Equador. Tem desenvolvido oficinas e seminários em várias cidades da América Latina, dirigiu o grupo UmaMinga, de Buenos Aires, para o qual escreveu “De la vulnerabilidad de algunas de nuestras pequeñas grandes empresas”, e foi jurado de Iberescena, do Ministerio de Cultura e de vários festivais de cinema no Equador. Atualmente é professor da Universidad de las Artes del Ecuador e prepara a edição de sua obra teatral completa junto à Fakir Ediciones.

Sobre Muégano Teatro

Muégano Teatro foi fundado em Madrid em 2000, durante o exílio de artistas procedentes da primeira geração órfã do neoliberalismo, do qual fugiam sem muita consciência. Seus estudos sobre Brecht os levaram de volta à América Latina, concretamente à conservadora cidade natal de um de sus diretores, Guayaquil, território significante para reinventar-se e afirmar o teatro como dissidência, em tensão com a realidade, a história e a memória. Aí Pilar Aranda e Santiago Roldós fundaram o Laboratorio de Teatro Independiente e o curso de teatro do ITAE (Instituto Superior de Artes del Ecuador), onde o grupo teve sua sede por muitos anos, até inaugurar o Espacio Muégano Teatro em 2014. Ganhador da VI Muestra de Teatro de Barcelona em 2001 por sua versão de “La edad de la ciruela”, de Arístides Vargas, Muégano tem desenvolvido uma dramaturgia própria (Karaoke Orquesta Vacía, Juguete cerca de la violencia, El viejo truco del círculo de tiza, Pequeño ensayo sobre la soledad, entre outras), e é convidada frequentemente a festivais e cidades da Iberoamérica: Cádiz, Bogotá, Manizales, Recife, Bayona, Sao Paulo, Ciudad de México, Caracas, Buenos Aires, etc., participando em seminários e desenvolvendo oficinas e residências.

Ficha Técnica "Luzes da Boemia"
Texto: Ramon del Valle-Inclán
Tradução: Aderbal Freire Filho
Encenação: Santiago Roldós
Assistência de direção: Clara Romariz
Iluminação: Santiago Roldós e Marcio Meirelles  com a colaboração de Marcos Dede e Zeuz Luz
Música: Bruno Torres
Cenário: Erick Saboya
Maquiagem e figurino: Marcio Meirelles
Elenco:
Apoena Serrat, Bruno Torres, Clara Romariz, Gilberto Reys, Igor Nascimento,  Lavínia Alves, Marcia Ribeiro, Mari Gavim, Rodrigo Lelis, Thauan Vivas, Victor Fernandes, Vinicius Bustani
Serviço


"Luzes da Boemia"
6 a 16 de abril de 2017
quinta a sábado: 20h
domingo: 19h
Teatro Vila Velha
Ingressos: R$20 (inteira) e R$10 (meia)

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