Entrevista com Jorgelina Cerritos
Autora de mais de trinta textos teatrais para públicos infantil e adulto, Jorgelina Cerritos tem recebido diversos prêmios literários nacionais e internacionais, entre eles o Premio Literario Casa de las Américas, com o texto "Al otro lado del mar". Suas obras têm sido publicadas, montadas e traduzidas em diversos países, e aqui no Brasil, não seria diferente. Traduzido para "Do outro lado do mar", o texto ganha sua primeira montagem brasileira em formato de web teatro, com encenação de Marcio Meirelles e elenco formado por Edu Coutinho e Andréa Elia. A peça está em sua última semana de apresentações. Você pode adquirir os ingressos aqui.
Em entrevista dada à Eduarda Uzêda, jornalista do A Tarde, Jorgelina Cerritos revela suas expectativas quanto à estreia de "Do outro lado do mar" em Salvador e as motivações para escrever o premiado texto. Jorgelina também comenta sobre o encontro entre os dois personagens, Dorotea e o Pescador, e acrescenta que o teatro resiste e segue vivo mesmo no contexto de pandemia.
Quais são as suas expectativas para a estreia da obra em Salvador?
Em primeiro lugar, a possibilidade de diálogo entre duas culturas
teatrais que tiveram poucas oportunidades de se encontrar, esse diálogo que
surge entre grupos de criadoras e criadores da cena e o autor, neste caso a
autora, do texto. Aquele encontro do qual você espera que surja empatia para
também compartilhar um discurso com o espectador. Espero que desse diálogo
surja a possibilidade de nos reconhecermos na alteridade. A essas expectativas,
quero acrescentar algo mais, que surgiu em mim depois de um momento de conversa
e risos com a equipe de criação, virtualmente. A estreia em Salvador tem uma
conotação especial: surge em meio a uma condição de pandemia que poderia
facilmente ter nos arrebatado o teatro e não o fez. Devemos dimensionar através
desse encontro que o teatro segue vivo, se adapta e se ajusta, se repensa e se
recria através de novas linguagens e de múltiplas formas, porém devemos
continuar mantendo sua essência e seu compromisso com o presente. A pandemia
torna a América Latina mais dura, precária e austera. Estar às portas de uma
estreia em tempos de pandemia é para mim um questionamento significativo – e
confiar que podemos continuar a reinventar um melhor mundo possível.
Em que circunstâncias foi escrita a obra e como nasceu a ideia de
história?
Escrevi Do outro lado do mar em 2009, em um momento em que estava questionando as “existências”: sociedade, papéis, preconceitos, cânones, os nomes que nos definem - e que não nos define - como pessoas, como famílias, como artistas e como mulheres. E busco, em mim, a pessoa que se supõe que devo ser nas condições sociais, econômicas e culturais como mulher-artista-mãe-salvadorenha, e não a encontro. salvadorenha-artista-mãe-salvadorenha e não a encontro. Nem em El Salvador, nem na América Central nos proveem aas condições para tudo aquilo que inclusive a oficialidade nos exige. Me ponho frente a mim mesma e irremediavelmente grito a pergunta: “E então? Quem sou eu além de um nome-sobrenome-idade-endereço? Qual é a minha essência realmente, além do que a oficialidade me dita, que devo ser esta mulher?” E então explodo. “Me sinto como um homem – repare que disse homem - que está ali, perdido, do outro lado do mar e que está remando e remando e remando para chegar a um lugar onde consiga simplesmente existir." Meu parceiro de teatro que me escutava me disse que isso funcionaria para uma novela e que eu não escrevia novelas. Com o passar dos meses, aquela raiva tornou-se palavra dramática na boca de Dorotea e Pescador.
Do Outro Lado do Mar toca em temas que são importantes e fala da necessária comunicação humana, da plenitude e liberdade versus o que é estabelecido por ordens, normas e convenções. Poderia aprofundar estas questões?
É que é justamente isso, pensar em rebelar-se contra aquelas
ideias que nos reprimem, que nos condicionam e que minimizam a condição humana
em plenitude e em liberdade e nos situa em um mundo de códigos, de cifras, de
ordens e convenções. Tudo isso que uma sociedade determina sem levar em conta
as necessidades e as diferenças pessoais que são essências do ser, e em troca
da nossa individualidade nos deixa perdidos em uma espécie de deserto, de
oceano, à deriva justamente “na hora da tarde em que a vida parece se acabar de
verdade”, com uma profunda sensação de vazio e solidão. Isso fazem conosco as
sociedades atuais, neoliberais conservadoras, midiáticas e patriarcais: nos submergem
em um maremoto de coisas sem sentido em que não só é difícil permanecer
flutuando como, ainda pior, estão tão bem construídas que não nos inteiramos e
normalizamos a nossa própria despersonalização.
Poderia falar dos personagens?
Em princípio, são duas pessoas sozinhas e, de uma ou de outra
maneira, perdidas. Dorotea de si mesma, e Pescador, da sociedade. Ela é uma
mulher construída a justa medida da mulher que o sistema necessita: dependente,
silenciada, presa aos papéis sociais que lhe dão o sentido de utilidade e quer
saber fazer seu trabalho e “que se esforça para fazê-lo bem”. Uma mulher
passiva que espera e que ao longo dos sete dias de encontro com Pescador vai se
redefinir. Por sua vez, o Pescador está à margem de qualquer convenção. Ele
vive em um espaço liminal, não porque decidiu, mas porque sempre esteve
excluído do sistema social ao qual poderia ter pertencido. Nessa forma de vida
“silvestre” ele se percebeu autosuficiente, até o momento em que a mesma ordem
de coisas que por tanto tempo o excluiu vem e o confronta, questionando a única
coisa que ele possui: a sua identidade. É
possível que o encontro de Dorotea e Pescador seja a salvação para ambos. Independentemente
do que possa ou não ocorrer no futuro, e ainda que seja tarde para romper com o
sistema que os isola.
Quais são suas influências literárias?
Em relação às influências faço, só por um motivo formal, uma
separação entre dois gêneros que em mim coabitam: a dramaturgia e a poesia. No
mundo da poesia, tenho que mencionar Frederico García Lorca (que, embora
escreva tanto teatro como poesia, em minha experiência pessoal entrou primeiro
como poeta, e depois como dramaturgo), Gabriel García Márquez (cuja narrativa é
poesia) e Claribel Alegría (poeta centroamericana). Dentro do gênero dramático,
tenho que mencionar José Sanchis Sinisterra, Arístides Vargas e Marco Antonio
de la Parra.
Quais escritores brasileiros de teatro você admira?
Antes de mencionar nomes, reitero o que disse no início: El Salvador e Brasil não tivemos muitos encontros teatrais específicos em nossas histórias, no entanto, Brasil tem nomes daqueles personagens obrigatórios, que chamamos universais. Nesse sentido, meu primeiro contato com um escritor brasileiro foi fora do mundo do teatro. Como estudante de Psicologia da Universidad de El Salvador, reconhecemos em Paulo Freire uma referência fundamental no âmbito da pedagogia crítica, como uma forma de ação social libertadora, e nesse mesmo enfoque, agora já no campo teatral, não poderia faltar Augusto Boal. Com o tempo conheci Nelson Rodrigues e, ainda que Antunes Filho não tenha sido escritor, espero ver alguma montagem da emblemática Macunaíma.
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