"É, o artista sonha dobrado"


Tiago Querino relembra o processo de montagem de A Última Virgem e reflete sobre a criação de seu personagem e o ofício do ator.

Foto: Alessandra Benini

Tinha acabado de voltar de Manaus e um amigo meu me chamou para uma confraternização na sua própria casa. Como sempre comi aquela água dura, fiquei chapado e acabei dormindo na casa do brother. Ao acordar com aquela ressaca deliciosa vou automaticamente mexer no celular e vejo uma mensagem no meu whatsapp. A mensagem era de um amigo\ator\diretor de teatro. Conversamos um pouco sobre o que cada um estava fazendo e os projetos futuros. No decorrer da prosa ele fala o seguinte: “Devo começar uma montagem nova em abril. Um Nelson Rodrigues. O Nelson será com o Vila Velha e a CTN....tem papel pra vc. Vou montar ‘Os sete gatinhos’, que completa 60 anos de estreia este ano. Mas com o título alternativo criado pelo próprio Nelson: ‘A Ultima Virgem’. Vou fazer algumas leituras, te aviso”. A ressaca passou na hora. Tomei um banho bem gelado, cantarolei músicas de Dorival Caymmi e fui para casa. No caminho de casa acrescentei Caetano Veloso ao repertório. Esperei ansioso a primeira leitura e, especialmente, o primeiro contato com o elenco. Alguns eu já conhecia, outros só de vista. A sensação da primeira leitura com pessoas que você não tem aproximação é a mesma coisa de ir ao primeiro dia de aula na época de escola ou ir pra um colégio novo. As pessoas não se olham, não se falam direito, quase um clima sem tempero no Tagine de Legumes. Hehehehehe.....Começamos os ensaios. O maestro escalonou os ensaios. A gente tinha uma dificuldade de juntar o elenco todo,  mesmo assim o processo foi leve. Isso graças ao nosso compositor que sabia reger os encontros com suavidade. Treinamos bastante, ensaiamos algumas manhãs e aos domingos também. Eu não curto ensaiar no horário da manhã. Mas pra fazer com que o show aconteça, a gente abre mão e abdica de tudo. Acordava de mau humor, tomava um cafezinho e ia pra batalha. Gosto de viver o processo todo. É importante pra mim. Lembro dos ensaios em dupla com Camila Castro à noite, de ficar no passeio público esperando o ensaio começar. Chegava cedo e trocava várias ideias com Newlton Olivieri. Adoro ouvir suas histórias e conselhos. Newtão é um querido. Nunca vou esquecer de voltar andando com Thauan Peralva Vivas para casa. A gente voltava falando do processo, de teatro, objetivos e sonhos.

Foto: Dan Figliuolo

É, o artista sonha dobrado. Por que não triplicado? O tempo ia passando e a estreia estava chegando. Aguardei a estreia, como um menino da divisão de base de um time de futebol, que espera o momento de jogar uma partida pelo time profissional. Dessa forma eu sabia que o terceiro sinal era o apito do juiz iniciando a partida. Sabia que tinha que disputar a bola com sangue no olho com o adversário. Mas no teatro eu não tenho adversário parceiro. Meus adversários não são os atores e o público. Meu oponente enquanto artista é o sistema capitalista, covarde e opressor. É ele que eu preciso vencer todos os dias. É esse sistema que me inquieta e me provoca. É por causa desse sistema que sou ator. A estreia chegou. Eu me encontro no camarim colocando o meu figurino. Não é o uniforme do Santos ou do Real Madrid. Mas eu visto branco. Só uso branco. Tenho dez ternos como esse. Uso um por dia. Chova ou faça sol. Vestido de Virgem começo a me maquiar. Percebo os meus colegas de trabalho através do espelho. Vejo em cada um, um jeito peculiar de ser. Vejo artistas. Sonhadores. Vejo um bando de loucos tentando melhorar o mundo. Acho que não vai ser dessa vez. Mas um dia a gente consegue. Acabo de fazer a maquiagem e desço para o palco. Pego a rolha de vinho que Fernanda Paquelet deu ao elenco e começo a falar meu texto com a rolha entre os dentes. Um ótimo exercício para a dicção. Tiro a rolha e procuro dizer meu texto. Percebo uma melhora na articulação. Obrigado Paquelet. Todos os dias eu faço isso. Faz parte para sempre do meu ritual antes de entrar em cena. Atores vão pro palco para fazer a roda e quem sabe gritar MERDA para dá sorte. Fizemos um círculo e nosso compositor pede a palavra. Acho que ele se emociona quando está com a gente de mão dada. Vejo ele feliz. Um dia quando ele acabou de falar com agente na roda, ele subiu a arquibancada e ficou olhando o grupo. O elenco estava se abraçando. Aí eu vi o Maestro com o brilho no olhar observando a gente. Tinha um leve sorriso na boca. Ali, eu vi o quanto ele gosta do que faz. O garimpeiro de sonhos nasceu para isso. Veio para fazer arte. Ao som de músicas antigas me concentro passando o texto. Sim. O mundo é um moinho. A vida é curta e passageira. Precisamos aproveita-la sem ranço. Tem muito ranço no teatro. Se Nelson Rodrigues tivesse vivo ia falar que "O câncer é um ranço evoluído". Queria conhecer Nelson pessoalmente. Falar de futebol e que o meu tricolor é melhor que o dele. Com essa provocação acho que poderia sair um texto de teatro. Os batimentos do coração aumentam com o segundo sinal. Hora de se posicionar. A voz de Grillo é como uma mensagem de Hemes\Exu\Fernanda Montenegro: “Desista! Não passe perto! Saia disso!(...) porque confundem teatro com liberdades, até com licenciosidade, com realização de sua opção sexual, com glórias, paetês, retrato no jornal, riqueza. Não sabe o que é isso aqui, então saia, saia da frente! Não ocupe espaço se depois vai ser bancário, vai ser doutor, vai ser diplomata, vai ser gari, enfim...Agora, se morrer porque não está fazendo isso, se adoecer, se ficar em tal desassossego que não tem nem como dormir, aí volte, aí venha aqui, mas se não passar por esse distanciamento e pela necessidade dessas tábuas aqui, não é do ramo!” É o verdadeiro barril de pólvora. É árduo. É laborioso pra chuchu. Contracenei muito com Camila. A troca foi linda e de muito aprendizado.


Foto: Dan Figliuolo

Com os outros atores eu troquei um mínimo olhar em cena. Eu aproveitava isso. Mas teatro também é processo e construção. Então me deliciava com os colegas nos bastidores. Eu captava a energia de cada um nos corredores do Teatro Vila Velha, nos camarins, nas coxias e até mesmo no bom dia e boa noite. Gratidão a esse elenco engenhoso. O corpo consumido por adrenalina da cabeça aos pés. Os acordes da música de Roberto Carlos preenchem todo o teatro. O ponto azul no palco é o meu destino. Em versos de malícia Aurora e Bibelot se engalfinham de sofreguidão. Assim a peleja no octógono levava uma hora e vinte. Tempo excelente para discutir questões importantes e necessárias com a sociedade. Agradeço a generosidade e humor do Garimpeiro de sonhos. Obrigado pela oportunidade de aprender com você. Vida longa ao ‘juntador de elenco’ = Celso Junior!

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