João Augusto não foi pra Cuba





Uma pequena biografia parcialmente inventada


Por Daniel Guerra


É difícil imaginar a vida de alguém se recorremos apenas a biografias. A complexidade de um percurso humano rejeita a mera síntese em fatos históricos. Por outro lado, numa única foto, num telegrama ou numa lista de compras de 50 ou 100 anos atrás, podemos testemunhar mundos que se abrem. É por isso que C. G. Jung começa sua autobiografia Memórias Sonhos Reflexões com essas palavras:

só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da minha vida através dos quais o mundo eterno irrompeu no mundo efêmero. Por isso falo principalmente das experiências interiores. Entre elas figuram meus sonhos e fantasias, que constituíram matéria original de meu trabalho científico. Foram como que uma lava ardente e líquida a partir da qual se cristalizou a rocha que eu devia talhar.

Tenho que admitir: antes de começar esse texto, eu não sabia muito sobre a vida e a obra de João Augusto. Me lembrava apenas de algumas histórias contadas nos corredores da Escola de Teatro. Por exemplo: eu sabia que João tinha arrumado alguma treta estético-política com Martim Gonçalves, e que, depois dessa refrega, juntou uns alunos para fundar a Sociedade do Teatro dos Novos. Em 1964, ano do golpe militar, o Teatro Vila Velha foi erigido em pleno Passeio Público, onde permanece até então.

Quem primeiro me levou à fonte foi Marcio Meirelles. Abrindo a sala envidraçada do arquivo do Vila, passamos por corredores com estantes lotadas de caixas plásticas brancas, cada uma contendo centenas de documentos históricos. Confesso que na ocasião senti certo medo e alguma vertigem. Ter muita informação à frente tem me dado esses surtos de pavor. Mas saí de lá cheio de histórias. Marcio abria caixas e mais caixas, me mostrando programas de peças e festivais, documentos de diretores, atores, funcionários e fotos de produções épicas como as de Temporada de Verão, que reuniu no mesmo palco Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa. Ainda assim, me parece extremamente difícil juntar numa mesma paisagem a Tropicália, o Vila Velha, o AI-5 ou o suicidado Vladimir Herzog. Um paradoxo concreto; um tilt na imaginação.

Algum tempo depois, um pouco mais calmo e já com trabalho a fazer, entrei novamente na sala, agora assessorado pelo coordenador de comunicação Gil Maciel. Foi então que ele abriu a caixa que mais me tocou. Dela saíram objetos e papéis pertencentes a João Augusto, como por exemplo um carimbo contendo essa inscrição misteriosa: “DOADO POR João Augusto Azevedo”. Sobre quais documentos João imprimia essas palavras?

Ou um título de eleitor rasgado ao meio e colado com durex. Suas margens estão gastas e o papel bastante amarelado. No verso, consta que o professor e diretor teatral votou nos anos de 54 e 55, mas no terceiro campo, referente a 56, não encontramos nada. Minha imaginação dramática não demorou a ser convocada: João se recusou a votar em Juscelino Kubitschek? Ou se esqueceu do dia da votação? Ficou doente? Já pressentia o golpe militar oito anos antes e virou anarquista? Não. De acordo com os outros títulos encontrados, ele votou ainda em 58, 62, 66, 70 e 72. Só nos resta imaginar o que teria acontecido nos anos deixados em branco.

Fiquei sabendo também, que em 7 de abril de 1976, o tenente coronel Wilmaly Moreira Bandeira de Mello atestou que João Augusto Azevedo estava “desobrigado do Serviço Militar, em tempo de paz, de acordo com o disposto no art. 5º da Lei do Serviço Militar”. Há aí uma ironia sutil: se o AI-5 foi baixado em 1968, durando até os anos 80, como poderiam falar em “tempos de paz”?

Num documento do Ministério da Guerra, João aparece em uniforme militar, numa foto 3x4 dos anos 40, quando era apenas um adolescente. Acima da digital do polegar direito, exibe um bigodinho ralo e cafajeste, queixo voltado pra cima, os olhos desafiando o espectador (provavelmente um fotógrafo militar) e uns cabelinhos melados de gel e partidos de lado. Conferindo os dados pessoais do novo soldado, descobrimos que mede 1,75 de altura, sua “cutis” é “branca” e a barba está devidamente “raspada”.

 Depois saltamos para o João adulto. Tem 44 anos em 1972. Mas a foto, estampada numa carteira de assistência médica, revela uma face mais jovem. Talvez tenha burlado os trâmites burocráticos, colando ali uma foto antiga. Está metido num paletó cinza com gravata preta e exibe certa melancolia no olhar. O bigode cafajeste não existe mais, a barba continua raspada. O cabelo está partido do mesmo lado (da esquerda para a direita), mas agora, livre do gel, se mostra levemente revolto. Há um tufo rebelde no topo da cabeça, na extrema direita, que confere à figura um ar sutilmente subversivo. Seus olhos, abatidos por pálpebras levemente caídas, já não nos encara desafiador: se oferecem em contemplação. Mas uma contemplação ativa, como a de quem esconde um segredo impossível de revelar.

É interessante quando nos pomos a par das suas viagens, a maioria por volta dos anos 70. Várias etiquetas de bagagem informam que o destino de João foi principalmente os Estados Unidos. Viajou para São Francisco, Minneapolis, Las Vegas, Los Angeles, Washington e à Disneylândia. Sim, João visitou a terra do Mickey. Não há como saber se foi levando sua família ou se decidiu ir só. É no mínimo curioso pensar que João saiu por um tempo da mira dos cassetetes ou dos furacões de processos teatrais para dar um abraço no Pateta e no seu companheiro Pluto. 


De qualquer forma, seu rosto não parece muito alegre num passaporte expedido em 1973. Com 45 anos, João exibe um rosto marcado pela idade, com olheiras profundas. O cabelo insiste partido do mesmo lado, e no final do penteado, aquele tufo outrora juvenil despenca para perto da orelha. Mas o tufo ainda evoca mares revoltos, diferentemente dos seus olhos, que estão ainda mais pesados. Na verdade, há um grande abismo entre o olho direito e o esquerdo. O esquerdo continua vivo e atento, enquanto o direito parece dormir. Mas não é um sono tranquilo. No alto da testa, num topete em forma de onda para o lado, nascem fios brancos que continuam pelo corte lateral, conferindo-lhe um ar imperial. Vemos sua boca comprimida numa tensão sem fim. Um fio de cabelo separado dos outros, lá do alto, quase a contragosto, revela uma independência questionável. 

Virando a página, descobrimos porque João talvez tenha ido abraçar o Pateta na Disneylândia. Lemos ali: “Países para os quais este passaporte é concedido: válido para os países que mantenham relações diplomáticas com o Brasil”. E mais adiante, em letras garrafais: “NÃO É VÁLIDO PARA CUBA”. 

Ao menos João pôde ir para a Venezuela e para a Colômbia em 1976. Neste novo passaporte, vemos um João mais velho e bem mais altivo. Seus lábios esboçam um sorriso simpático e os cabelos brancos tomam quase toda a visage. Vejo nele muita dignidade. Agora, até as olheiras parecem se harmonizar com as rugas do queixo quadrado. Já é um senhor, um senhor respeitável. Algo ali me lembra Roberto Carlos.

Um ano antes, João estava em Nancy, França, durante o X Festival Mondial du Theatre. Na carteirinha de acesso ao restaurante universitário, João Augusto exibe o João artista. Brotando de um casaco jeans, o queixo volta a apontar para cima. Seus olhos brilham através da película fotográfica e os cabelos estão finalmente liberados. Os fios brancos se juntam aos pretos sem solução de continuidade, enquanto a boca por pouco não se abre num sorriso de desdém juvenil pelo mundo inteiro. “Fuck off putain de merde!”. João já não olha para o fotógrafo ou para as lentes da máquina. Observa atentamente um ponto distante, de viés, ao lado da câmera. Aponta para o fora-de-quadro, ali onde o infinito se encontra com a França e o teatro. 


Por fim, uma agenda de 1979. Nela, além dos dados pessoais da primeira página, não encontramos nada, a não ser alguns números de telefone anotados em janeiro. Em meio aos números, a palavra “hemograma” se destaca. Passamos as páginas com seus dias e meses vazios, até que nos batemos com uma caligrafia estranha. Já é outra a mão que escreve, no dia 25 de novembro de 1979, as seguintes palavras: “Falecimento de João às 15 horas e 15 minutos, Salvador Bahia”. 

No dia 26: “Enterro às 11 horas, Campo Santo Cemitério, Na quadra 13, Canteiro (?) 1.891”

E um dia depois: “Missa de sétimo dia, Mosteiro São Bento, Salvador”

Alguma coisa não bate. Se João morreu no dia 25, porque uma missa de sétimo dia 48 horas depois? Talvez aquela mão estranha (a da morte em pessoa, ou a de um parente, ou a de uma esposa, ou a de uma amante - pois a caligrafia me parece feminina) tenha apenas, naquele dia, sinalizado um evento futuro. O fato é que João não foi a Cuba, nem viu a ditadura acabar.

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