Espetáculo En(cruz)ilhada, por Nelson Maca
O espetáculo "En(cruz)ilhada", mais novo trabalho do ator Leno Sacramento, do Bando de Teatro Olodum, realiza últimas apresentações na Sala João Augusto do Teatro Vila Velha, neste e no próximo sábado, dias 22 e 29 de julho, às 19h. Escrito e interpretado por Leno, o monólogo tem direção de Roquildes Junior e trilha sonora de Gabriel Franco, e reflete sobre a "morte" em suas mais diferentes formas. O poeta e escritor Nelson Maca escreveu artigo sobre a peça. publicado originalmente no jornal Correio. Leia abaixo.
En(cruz)ihada é uma obra de arte complexa. Sem massagem, a peça monta um painel com diversas formas de morte do povo preto. O enfoque não surpreende quem acompanha a carreira de Leno Sacramento, que é também ator do Bando de Teatro Olodum. Quem se acostumou a vê-lo em papéis cômicos, nesse trabalho dilacerante, conhecerá uma outra face. Honesta e impactante. Ainda mais desafiadora pelo fato de contar apenas com textos, sons e ruídos em off. São 35 minutos em que ele mixa uma série de personagens sem voz. Como um DJ talentoso que nos conduz de uma música a outra sem pausa nem ruptura rítmica, Leno nos leva de um drama a outro sem linhas de corte.
Esse continuum exasperado só ganha uma pausa para o respiro na cena conduzida por um doce canto em iorubá, único momento de fala direta do ator. Um mergulho na memória da infância e adolescência. Numa espécie de passarela em forma de cruz, ele apresenta seus simulacros de brincadeiras de um tempo bom. Bola de gude, amarelinha, esconde-esconde, pega-pega, condução de arco com vareta, carrinho e o volante do automóvel... Não há dúvida que a peça fala de uma herança coletiva.
Um oásis no painel de aridez racial e racismo escaldante que corta na carne da plateia. A memória como reserva de humanidade. Para além da lembrança do quintal da casa e das ruas do bairro, despertou a África permanente em mim. A plateia pode ser tocada. Através da pedagogia da pedra e um fio do mel da memória, é compelida a refletir na encruza do presente e passado.
Personagens mudas em sala que reverbera diálogos e pensamentos editados por uma sonoplastia que potencializa o caos. Vozes, cochichos, sussurros, latidos, ruídos, armas engatilhadas e ameaças. Muito barulho retratando pessoas silenciadas. O que mais me agrada é não saber classificar o que assisti. Um corajoso experimento de linguagem. Afastamento da zona de conforto. Nem Dionísio nem Apolo. Nem palco nem tablado. Uma montagem encruzilhada. Uma cruz na estrada. Corpo, figurino, expressões, som, luz e público amalgamados num só tecido. Cada pessoa presente denunciada como parte integrante do nosso grande conflito racial.
A sequência final se desenvolve sobre o meu poema Prefácio da Ira, que faz um inventário de instrumentos e formas de torturas da escravidão. Lembra, com muita dor que, desde o tataravô branco colonizador até seu tataraneto, a violência racial é ininterrupta, adaptável e evolutiva. Nos traços estéticos e código ético de En(cruz)ilhada, vejo a busca de um teatro negro. A palavra “cruz” aparece incrustada na palavra “en(cruz)ilhada”. Encruzilhada, cruz, ilha, ilhada. Polissemia que reveste a peça. Diferentes experiências de vida negra em conflito.
En(cruz)ihada martela, sem dó, o cerebelo de todos. Macera a casca e dilata a ferida, para que nosso sangue não se estanque no esquecimento e nossa história não seja acariciada pela pomada da distorção. Dirigida por Roquildes Junior e com trilha sonora de Gabriel Franco, a peça fica em cartaz na Sala João Augusto, do Teatro Vila Velha, durante os sábados de julho.
* Nelson Maca é escritor
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