Aroeira: diálogo entre linguagens "e o que sobra do amor"...
A Companhia Viladança, criadora e intérprete de Aroeira: com quantos nós se faz uma árvore, em cartaz no Teatro Vila Velha, constrói uma extensa dramaturgia para representar a memória: essa grande senhora que tanto inibe como potencializa o cotidiano de nossas ações no mundo da vida e que, tecida no tempo - como espécie de tatuagem fixada aos poucos na alma dos seres, ora recria, ora forja e traduz-se na sensação constante das lembranças de toda espécie.
A memória funda um país sem quaisquer fronteiras: não há mundo de dentro - um seu possível lugar instalado - como não há o mundo de fora; também não há tempo, tudo se dilui e se instaura numa permeabilidade inequívoca, escancarada e constante.
Aroeira traz inúmeros desafios. Desafio já presente em sua própria montagem, pois quer, inicialmente, o diálogo entre duas narrativas.
Uma é a narrativa que faz jus a essa mecânica atemporal pois, anterior e musical, criada por Milton Nascimento, veio a tornar-se, como obra de arte, disponível à leitura de Cristina Castro e seus companheiros, 15 anos depois; a outra é uma narrativa corporal a existir, a ser construída, num brevíssimo futuro (que agora já é passado), sobre algumas antigas sementes de idéias: a fotografia, a imagem, a memória... e as consequências disso tudo na vida contemporânea...
Somam-se a esse os desafios narrativos daqueles que contam, juntos, uma mesma história...
As imagens, em vídeo, frivolités, de tão delicadas, invadindo mentes e corações; o cenário e figurinos que se fundem numa mitologia própria e a luz, ao mesmo tempo vibrante, imprevisível e densa de intimidade.
Na cena, o desafio maior... cada um dos intérpretes criadores é um personagem que no seu gestual próprio, vivenciado e revivido, ao longo das várias situações do espetáculo, provoca o espectador a igualmente usar de sua memória, no reconhecimento do outro ser humano que com ele continuamente interage no mundo.
Como traduzir a vida na linguagem do corpo? Aroeira é de uma sutileza...
Seja numa quase mistura de teatro nô e kabuki, num primeiro plano no palco, em que numa linha paralela à platéia os personagens se almejam... seja no ímpeto quase sempre contido dos corpos, Aroeira orienta e desorienta, travestindo-se ininterruptamente em cenas estanques. Numa linearidade difusa e veloz aparecem tantas imagens... os padrões culturais impostos, o lugar da infância, as questões do gênero, a constatável e necessária diversidade, o consumo, a individualização massacrante num cenário ausente de projetos coletivos e... o amor.
Engraçado. Numa língua inventada por Milton, que vez por outra deixa entrever (a palavra é essa, entrever... pois vemos as palavras no gesto dos corpos) - algumas expressões lógicas - existe uma frase plausível: "...e o que sobra do amor"...
À pergunta, há uma resposta que vem. Um mesmo tema musical, tão lírico, em três interpretações diferentes, em três cenas, busca fazer uma costura peculiar no espetáculo.
E aqui, abstraindo mais uma vez, pensando, não na música, mas na essência mesma da condição de toda e qualquer linguagem a serviço da causa criadora, podemos dizer que há um inegável liame de amor em Aroeira. Denso amor no gesto que brinca, que deseja, que sustenta.
Milton que, não à toa, tem nascimento no nome, traz à história contada pelo Viladança ares, ventos de otimismo e de esperança...
Aroeira, árvore nativa da Bahia e Minas Gerais... Aroeira, o mais novo espetáculo da Companhia Viladança, junto com Milton Nascimento, em cartaz no Teatro Vila Velha, é o trânsito entre o que fomos, o que somos e o que vamos sendo sobre a mais leve possibilidade de futuro que, hoje, antevemos.
Sérgio Rivero é doutorando em comunicação pela FACOM/UFBA, professor e editor de publicações das Faculdades Jorge Amado e teve o imenso prazer de contribuir como consultor de dramaturgia em Aroeira. Este artigo foi publicado no caderno Cultural do jornal A Tarde em 24/06/2006.
Nós só percebemos, praticamente, o passado,
o presente puro sendo o inapreensível
avanço do passado a roer o futuro...
Matéria e Memória - Henri Bergson
o presente puro sendo o inapreensível
avanço do passado a roer o futuro...
Matéria e Memória - Henri Bergson
... Os indivíduos estão sendo, gradual mas consistentemente,
despidos da armadura protetora da cidadania e
expropriados de suas capacidades e interesses de cidadãos...
Modernidade líquida - Zygmunt Bauman
despidos da armadura protetora da cidadania e
expropriados de suas capacidades e interesses de cidadãos...
Modernidade líquida - Zygmunt Bauman
A Companhia Viladança, criadora e intérprete de Aroeira: com quantos nós se faz uma árvore, em cartaz no Teatro Vila Velha, constrói uma extensa dramaturgia para representar a memória: essa grande senhora que tanto inibe como potencializa o cotidiano de nossas ações no mundo da vida e que, tecida no tempo - como espécie de tatuagem fixada aos poucos na alma dos seres, ora recria, ora forja e traduz-se na sensação constante das lembranças de toda espécie.
A memória funda um país sem quaisquer fronteiras: não há mundo de dentro - um seu possível lugar instalado - como não há o mundo de fora; também não há tempo, tudo se dilui e se instaura numa permeabilidade inequívoca, escancarada e constante.
Aroeira traz inúmeros desafios. Desafio já presente em sua própria montagem, pois quer, inicialmente, o diálogo entre duas narrativas.
Uma é a narrativa que faz jus a essa mecânica atemporal pois, anterior e musical, criada por Milton Nascimento, veio a tornar-se, como obra de arte, disponível à leitura de Cristina Castro e seus companheiros, 15 anos depois; a outra é uma narrativa corporal a existir, a ser construída, num brevíssimo futuro (que agora já é passado), sobre algumas antigas sementes de idéias: a fotografia, a imagem, a memória... e as consequências disso tudo na vida contemporânea...
Somam-se a esse os desafios narrativos daqueles que contam, juntos, uma mesma história...
As imagens, em vídeo, frivolités, de tão delicadas, invadindo mentes e corações; o cenário e figurinos que se fundem numa mitologia própria e a luz, ao mesmo tempo vibrante, imprevisível e densa de intimidade.
Na cena, o desafio maior... cada um dos intérpretes criadores é um personagem que no seu gestual próprio, vivenciado e revivido, ao longo das várias situações do espetáculo, provoca o espectador a igualmente usar de sua memória, no reconhecimento do outro ser humano que com ele continuamente interage no mundo.
Como traduzir a vida na linguagem do corpo? Aroeira é de uma sutileza...
Seja numa quase mistura de teatro nô e kabuki, num primeiro plano no palco, em que numa linha paralela à platéia os personagens se almejam... seja no ímpeto quase sempre contido dos corpos, Aroeira orienta e desorienta, travestindo-se ininterruptamente em cenas estanques. Numa linearidade difusa e veloz aparecem tantas imagens... os padrões culturais impostos, o lugar da infância, as questões do gênero, a constatável e necessária diversidade, o consumo, a individualização massacrante num cenário ausente de projetos coletivos e... o amor.
Engraçado. Numa língua inventada por Milton, que vez por outra deixa entrever (a palavra é essa, entrever... pois vemos as palavras no gesto dos corpos) - algumas expressões lógicas - existe uma frase plausível: "...e o que sobra do amor"...
À pergunta, há uma resposta que vem. Um mesmo tema musical, tão lírico, em três interpretações diferentes, em três cenas, busca fazer uma costura peculiar no espetáculo.
E aqui, abstraindo mais uma vez, pensando, não na música, mas na essência mesma da condição de toda e qualquer linguagem a serviço da causa criadora, podemos dizer que há um inegável liame de amor em Aroeira. Denso amor no gesto que brinca, que deseja, que sustenta.
Milton que, não à toa, tem nascimento no nome, traz à história contada pelo Viladança ares, ventos de otimismo e de esperança...
Aroeira, árvore nativa da Bahia e Minas Gerais... Aroeira, o mais novo espetáculo da Companhia Viladança, junto com Milton Nascimento, em cartaz no Teatro Vila Velha, é o trânsito entre o que fomos, o que somos e o que vamos sendo sobre a mais leve possibilidade de futuro que, hoje, antevemos.
Sérgio Rivero é doutorando em comunicação pela FACOM/UFBA, professor e editor de publicações das Faculdades Jorge Amado e teve o imenso prazer de contribuir como consultor de dramaturgia em Aroeira. Este artigo foi publicado no caderno Cultural do jornal A Tarde em 24/06/2006.
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