UNIVERSIDADE LIVRE DE TEATRO VILA VELHA - Ainda somos os mesmos - Por Michel Santana

Foto: Tatiana Semêdo
"Apolo Deus das artes" - vivido por Michel Santana em "Por que Hécuba"

- Texto produzido a partir do processo de organização dos documentos de memória do Teatro Vila Velha
Ainda somos os mesmos

Ainda somos os mesmos, diria Elis. Ver isto hoje não é uma dor, mas sim uma ponta de esperança.

Quando soube que iria para a comunicação, tive medo por imaginar que não teria habilidades suficiente para acrescentar no território e no trabalho dos colegas, mas acabei ficando responsável pela coleta de material para as postagens e a gestão dessa agenda de geração de material e uma coisa que eu não esperava estava por vir.
Gil Maciel (Te amo Gil), territorialista de comunicação, informou que havia algumas atividades a serem realizadas na memória do teatro (principalmente e inicialmente a substituição das caixas). Alguns amigos focaram mais no processo de montagem das caixas e eu me aproximei mais da substituição das caixas em si.

A primeira vez que entrei naquela sala com cheiro de antiga, imaginei que seria apenas mais uma atividade que eu já fazia pelo Vila. Puxei a primeira caixa. Estava bem deteriorada. Comecei a substituição. Em um momento me deparei com um envelope que continha recortes de jornal de uma peça: "Eles não usam Black-Tie". Marcio já havia mencionado esse espetáculo em um dos encontros com a Livre. A mesma curiosidade que matou o gato fez algo nascer em mim. Abri o envelope. Havia algumas fotos e textos falando sobre o texto de Gianfrancesco Guarnieri encenado por João Augusto.

João Augusto. Outro nome que Marcio já havia mencionado e que também é o nome que batiza nossa principal sala de ensaio. Comecei a ler e outros nomes ia surgindo com o passar dos envelopes e dos documentos. Alguns conhecidos e outros que desconhecia até então. Nomes como Echio Reis, Sônia Robatto, Carlos Petrovich, Othon Bastos, Thereza Sá, Carmem Bittencourt, Sônia dos Humildes, Benvindo Siqueira, Mário Gusmão, Chica Carelli, Bando de Teatro Olodum, Companhia Teatro dos Novos, Sociedade Teatro dos Novos, Grupo Teatro Livre da Bahia, Vilavox e inúmeros outros nomes. Continuei lendo. Naquele dia li mais que trabalhei. Saí da memória e fiquei pensando em tudo aquilo.

No outro dia voltei para a memória e li mais, vi fotos, borderôs, contratos, prêmios. Neste dia mergulhei e trabalhei mais, e com mais afinco. No outro dia trabalhei mais que neste dia. No outro, mais do que naquele. As horas passavam enquanto estava lá sem que eu percebesse. De certa forma aquilo me alimentava. Passei a ver umas coisas que Márcio ainda não havia mencionado: contratos, grupos, artistas, desenhos (inclusive do próprio Márcio), textos, cartazes, liberações e proibições de peças pela censura federal. Aos poucos um Vila que eu não conhecia foi se revelando (e se revela até hoje) durante esse processo.

Um documento em especial mexeu bastante comigo. Era uma carta datilografada que João Augusto enviou para Gilberto Gil em 1966 quando morava no Rio de Janeiro. Eu consegui ouvir a voz de uma pessoa que não conheci falando de grandes feitos do Vila e no Vila, e de velhos calos conhecidos. As lágrimas que me brotaram não foram de tristeza pelos velhos calos, mas sim de esperança por ver que há tanto tempo a arte sobrevive a todos esses calos antigos e os novos que vão surgindo. Esperança por ver que apesar de tudo, seguimos falando, falando e falando. Em tempos difíceis, seguimos. Esperança por ver que temos uma responsabilidade de seguir cumprindo o papel que é nosso. Esperança por ver que, mesmo estando no programa de formação que é a Universidade Livre, estou e estamos sobre ombros de gigantes, de gente que fez das tripas coração, que fez de ideias simples coisas inacreditáveis, de gente que conseguiu passar um discurso significativo para a sociedade muitas vezes com tão pouco recurso financeiro e logístico, mas com os principais recursos que qualquer um pode empregar em qualquer projeto: sangue, suor e lágrimas. Observar isso diz muito sobre o fato de termos a responsabilidade de pegar o bastão e seguir buscando chegar mais alto, alcançando novos vôos. Jamais para ser melhor que A ou B, mas por acreditarmos na arte que fazemos e no seu poder de questionar, de apontar, de perguntar  "por quê?" como a voz de Chica Carelli pergundo, ecoando no palco escuro do Teatro Vila Velha em Por que Hécuba.

Márcio uma vez disse que cada espetáculo é um milagre. Poder trabalhar na memória é ver os registros dos inúmeros milagres de gente que, como nós, seguiu acreditando.
Gente como nós.
Ainda somos os mesmos: vivemos.

Michel Santana – participante da Universidade Livre de Teatro Vila Velha

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